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‘Fake news terão um papel ainda maior nas eleições deste ano’

Professor da Universidade de Virginia (EUA), capixaba David Nemer comenta sobre a rede de notícias falsas no Brasil

Dan Addison

Formado em 2006 em Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Ciência da Computação pela Faesa, o capixaba David Nemer vive desde 2010 nos Estados Unidos, onde cursou doutorado e hoje leciona na Universidade de Virgínia, especializando-se em Antropologia da Informática.

“Meu interesse sobre estudo entre tecnologia e sociedades surgiu desde a época da graduação. Sempre estive envolvido em iniciação científica e fiz parte de projetos de inclusão digital. Isso me ajudou a ir além da parte técnica da informática e olhar também a parte social, antropológica”, conta.

Sua tese de doutorado girou em torno dos telecentros na região do Território do Bem, conjunto de comunidades periféricas de Vitória. “Na pesquisa mostro como esses centros são comunitários, vão para além de um uso da tecnologia”, diz sobre os espaços de referência que considera que têm sido abandonados pela última gestão da prefeitura em prol da instalação de internet via Wi-Fi. O trabalho também resultou no livro Favela Digital, que reúne olhares fotográficos sobre a experiência no Território do Bem.

Nesta segunda-feira (29), às 17h, David Nemer participa do debate online “Democracia na Era da Pós-Verdade”, junto com o historiador Marcelo Siano em evento realizado pela Associação Nacional de História (Anpuh) em seu Instagram. No debate, o professor e pesquisador vai explorar um dos temas que vem acompanhando: as redes de notícias falsas ligadas especialmente ao bolsonarismo. E alerta: este ano o impacto delas pode ser ainda maior nas eleições por conta do novo coronavírus.

Um dos temas do momento são as investigações sobre as fake news, mirando sobretudo as redes bolsonaristas. Qual o nível de importância dessas redes para a eleição de Jair Bolsonaro? Acha que essas investigações podem derrubar o presidente pela via judicial ou afetar significativamente sua base de apoio?

Desde 2017 venho pesquisando redes de desinformação, a produção, a infraestrutura social e a tecnologia que permitem a produção e distribuição de fake news, assim como tenho estudado a ascensão do extremismo político, da extrema direita.

Não procede falar que Bolsonaro foi eleito por causa de fake news. Mas as fake news ajudaram a criar um ambiente extremamente hiperpolarizado onde é muito difícil se debater. As pessoas se radicalizaram a partir dessas fake news, em que só importa a verdade que lhes satisfaz, a verdade deles. Então a verdade factual não importa mais, o que importa é aquilo que vem satisfazer. E infelizmente muita dessa informação que vinha a satisfazer era fake news. Então ajudou na polarização, mas no que tange a Bolsonaro ter ganho por conta das fake news, acho que ganhou e iria ganhar com ou sem elas. O fato é que resultou nessa sociedade extremamente polarizada. Sobre as investigações, é difícil falar se isso pode derrubar ou não o governo. É uma coisa muito séria, que precisa ser investigada.

Depois das eleições, é possível observar mudanças na configuração dessas redes em relação a questões como forma, organização, integrantes, mensagem e estratégias de difusão? Ou elas mantêm um funcionamento similar à época de campanha eleitoral?

De 2018 até aqui a base de Bolsonaro só tem diminuído. Só tem diminuído porque atores atuantes no bolsonarismo foram saindo. Saiu o MBL, saiu o Vem Pra Rua, saiu Alexandre Frota, saiu Joice Hasselmann. Esses atores políticos têm poder de mobilização muito forte e sem eles o bolsonarismo perdeu muito apoio popular, apoio de massa. Com a saída de [Luiz Henrique] Mandetta e [Sergio] Moro [ex-ministros do governo] essa base diminuiu bastante.

A base que ficou é impenetrável, não diminui mais. Corresponde aos 25% a 30% que a gente vê nas pesquisas de opinião. É uma base que não vai mudar de opinião, vai ficar com literalmente fechada com Bolsonaro, e se alguém quiser vencer Bolsonaro nas eleições vai ter que saber lidar com esses 30%. Acho que a gente não vai conseguir mudar a opinião desses 30%, então a gente vai ter que aprender a coexistir, já que eles não vão mudar, eles acreditam só naquilo que Bolsonaro e o bolsonarismo prega. É uma coisa meio fanática, então não adianta perder energia com esses 30%, é melhor gastar energia fazendo aquela frente ampla democrática com os 70%

Agora, essas redes mudaram sim depois das eleições. Antes os grupos de WhatsApp eram todos com fim principal de fazer Bolsonaro eleito. Uma vez que ele foi eleito, as pessoas dentro desses grupos começaram a entrar em desavenças. Entre os que se alinhavam com Bolsonaro estão os ligados ao militarismo, aos evangélicos, aos olavistas. Essas vertentes, esses pilares do bolsonarismo batem cabeça o tempo todo, não são complementares.

Então esses grupos explodiram. O pró-Bolsonaro era mais genérico e implodiu. Hoje temos grupos que continuam pró-Bolsonaro, mas que são mais específico no tema, por exemplo, grupo olavista, grupo militar e grupo evangélico não têm muita mistura.

Hoje tem muito menos produção caseira de vídeo e memes anônimos e mais distribuição de artigo e links de portais de notícias de fake news. Esses portais sobre os quais o Sleeping Giants tem criado uma certa consciência.

Dan Addison

Com as investigações iniciadas, muitos conteúdos estão sendo apagados por pessoas que disseminaram fake news com medo de processo judicial. Acha que essas redes de mentiras estão em pânico?

Em relação à investigação, eles estão em pânico. Essas redes de fake news são muito mais precárias tecnologicamente do que as pessoas imaginam, de que são pessoas com alta instrução tecnológica, que entendem sobre segurança digital. A grande parte dessas redes não entende muito, é só gente com tempo e vontade recebendo dinheiro para fazer esse tipo de serviço, mas não tem essa expertise tecnológica toda. Por isso estão em pânico agora, porque a Polícia Federal está atrás e coletando todos os rastros digitais que eles deixaram. E eles deixaram muitos. Então eles são totalmente rastreáveis.

Pelo alcance imenso, se supõe que são redes que exigem uma estrutura de pessoas e recursos econômicos. Que grupos estariam por trás dessas redes de notícias falsas?

Sobre financiamento, é verdade, tem pessoas com dinheiro por trás deles, bancando isso tudo. É isso que inquérito das fake news está querendo investigar. É difícil falar em nomes porque é uma coisa muito séria, não posso falar quem eu acho. Tem que esperar o avanço das investigações para saber quem está por trás.

O inquérito está investigando por exemplo o famoso “véio da Havan” [o empresário Luciano Hang], pode ser que esteja envolvido com isso. Mas vale lembrar também que uma forma de arrecadar dinheiro desses sites de fake news é pelo Google AdSense, que é a forma de propaganda nesses sites. O Sleeping Giants criou essa consciência e tem trabalhado muito forte para que as empresas não anunciem no AdSense nesses sites, muitos saíram e secou fonte para muitos sites. Outra forma que conseguiam financiamento é por doações pela plataforma do Apoie.se, que mudou a gestão e não permite mais financiamento de sites de fake news.

Você vive nos Estados Unidos, que teve o emblemático caso da eleição de Donald Trump… quais diferenças e semelhanças observa entre essas redes nos dois países?

Na diferença entre Estados Unidos e Brasil podemos focar em qual rede foi usada como rede principal da distribuição da rede de fake news. Nos Estados Unidos, em 2016, o Facebook foi o campo fértil de espalhar, produzir e compilar fake news. No Brasil em 2018 foi o WhatsApp.

É interessante que o Facebook tem um algoritmo que pode ajudar a expandir essa distribuição. Aí que entra a Cambridge Analytics, que mostra como o Facebook permite traçar perfis para expandir certo conteúdo para uma certa população.

No WhatsApp isso não é possível, não há um algoritmo, toda mensagem precisa de uma pessoa que envia e uma pessoa que recebe, não tem um algoritmo mediando isso. Então precisa literalmente um exército de pessoas para poder fazer isso, que são as chamadas milícias virtuais. Na época das eleições foram pegos agentes fazendo disparo em massa, como a [agência] AM4. Mas apesar de ter sido um problema, não foi o maior na questão do fake news no WhatsApp, pois quem mais trabalhou nisso foi a chamada milícia virtual.

Dan Addison

O que considera que deve ser feito para se ter sucesso no combate às fake news no Brasil?

As fake news sempre existiram e sempre vão existir. O que não pode ter é nesse nível de criar uma ameaça à democracia e nossos processos democráticos. Isso não pode ter, precisa ser combatido. Para isso precisa de várias frentes, tanto tecnológica, educacional, como política.

Por exemplo, na parte tecnológica, as plataformas precisam identificar disparos em massa, no WhatsApp não é permitido. Uma pessoa normal não consegue enviar mensagens para mais de 20 pessoas em 1 segundo e essas contas automatizadas mandam pra milhões. E o WhatsApp consegue detectar isso e pode banir essa conta, por exemplo, pode diminuir o número de encaminhamentos como fez, o que diminuiu também a distribuição de fake news. O Facebook também pode identificar sites notoriamente conhecidos como de fake news e não permitir a distribuição desses sites. Tem muita coisa que pode ser feito no âmbito da tecnologia.

No âmbito da lei, a gente já tem sobre calúnia, difamação e, infelizmente, não estão funcionando. Precisam ser adaptadas à nossa realidade. Temos leis severas contra o racismo e a homofobia e, ao mesmo tempo, vemos esses crimes sendo produzidos como parte do teor das fake news. Então é preciso criar instrumentos para que essas leis que já existem possam ser cumpridas.

Também tem a questão educacional. No Brasil não se tem educação digital, a gente vê muitos pais jogando tablets nas mãos das crianças sem ter uma conversa, sem uma educação, um acompanhamento. Então é lógico que as fake news viram atrativo muito forte para quem tem acesso a qualquer dispositivo digital.

O governador Renato Casagrande tem sofrido constantes acusações falsas vindos de grupos ligados ao bolsonarismo. Você tem acompanhado algo sobre o Espírito Santo?

Tenho acompanhado esses ataques, essas fake news que o governo Casagrande tem sofrido. Isso mostra muito como esse modelo do Gabinete do Ódio que se instalou no Planalto é o que vem sendo replicado regionalmente. Aqueles que se identificam com o bolsonarismo replicam esse modus operandi como tática política para atacar o adversário, não é surpresa que isso esteja acontecendo no Espírito Santo. Infelizmente está acontecendo, mas não é surpresa. E eu acredito que isso vai se intensificar mais chegando perto das eleições municipais

Qual influência acha que as fake news podem ter nas eleições municipais deste ano no Brasil? Maior ou menor que na anterior? Por quê?

Em relação às eleições municipais deste ano, com certeza as fake news terão um papel ainda maior, já que devido à pandemia, a gente está em casa. O TSE [Tribunal Superior Eleitoral] já sinalizou que candidatos poderão ter presença e atividades mais amplas no âmbito online, já que as atividade offline não vão ser possíveis. Então pessoas vão se voltar ainda mais para internet para se informar e ficar por dentro dos candidatos.

E é lógico que vai ter gente que vai se aproveitar, tomar proveito disso para criar aquela sensação de terror, de medo, para que as pessoas sintam-se vulneráveis e se apeguem a um candidato que prometa ser o salvador da pátria, como a gente viu em 2018. Então vai ter muito mais fake news, já que a abordagem este ano vai ser mais focada na internet do que em 2018. 

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