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Frei Betto denuncia massacre indígena e mostra Jesus como militante

Ativista político com trajetória rica no campo da esquerda, jornalista e escritor lança livros em Vitória, no próximo dia 17

Arquivo Pessoal

O tom Vermelho do Verde é o livro que Frei Betto, jornalista, escritor, com formação em antropologia, filosofia, teologia e ativista político, lança em Vitória no próximo dia 17, no espaço Ellus, Centro, juntamente com o livro infanto-juvenil O Estranho Dia de Zacarias e Jesus Militante, que aborda a atividade política de Jesus. Ele conversou com Século Diário e revelou uma memória afetiva com a Capital do Estado, para onde veio depois de sair da prisão, na década de 70, durante a fase mais dura da ditadura militar. Aqui, ele viveu cinco anos. “Sinto saudades”, diz.

Frei Betto falou sobre os livros que lançará e abordou temas políticos e religiosos, mostrando-se otimista, porque acredita na vitória do ex-presidente Lula sobre o “inominável”, como ele prefere afirmar ao se referir a Jair Bolsonaro (PL).

O Tom do Vermelho no Verde é um romance sobre o massacre de povos indígenas, os Wamiri-Atroari, ocorrido na ditadura. Coincidentemente, segundo Betto, o livro é lançado pouco depois do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, em junho, e quando as terras dos povos indígenas ainda não estão demarcadas e invadidas  por grileiros.

Confira a entrevista:

A questão indígena, ainda não resolvida no Brasil, é um tema recorrente. Como você chegou a essa história?

Eu tive vários contatos com povos indígenas, mas eu li, em 1998, um livro do padre Sabadini sobre uma expedição na Amazônia junto ao Wamiri-Atroari, comandada por um padre, colega dele, que não tinha experiência indigenista. Essa expedição, bancada pela Funai [Fundação Nacional do Índio], acabou sendo massacrada, porque foi vítima de uma cilada. O livro conta, com personagens fictícios, não aparece padre, nada, eu cortei 90% dos personagens. Me baseei nesse fato histórico.

Fiquei impressionado com esse massacre e, mais ainda, com o fato dessa história, no Brasil, ser muito pouco conhecida; consta muito pouco nas comissões da verdade. Então eu fiquei grávido – a palavra é essa -, desse tema, e nos últimos cinco anos, resolvei transformar num romance e trabalhei intensamente, pesquisei, li muito, consultei vários indigenistas, especializados nessa área, que, aliás, eu cito no livro, agradecendo, e ‘taí’ o romance.

Uma enorme coincidência com esse momento de não demarcação das terras indígenas, do assassinato do Bruno e do Dom [indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, assassinados durante uma viagem pelo Vale do Javari, em 25 de junho de 2022], uma mera coincidência, mas o livro denuncia o massacre que a ditadura fez com os povos indígenas, assentado o foco na história, pois tinham mais de três mil Wamiri-Atroari, dizimados através de incêndio na aldeia, metralhadora, napalm, arsênico e outras modalidades que estão todas descritas no livro.

Além de escritor, você é um ativista político, com trajetória muito rica, a partir do projeto Fome Zero, no governo Lula, como vê o atual momento do País?

Eu vejo com otimismo, porque o presidente Lula será eleito. Vai tomar posse e não há nenhuma visão de Bolsonaro implantar uma ditadura, embora ele esteja desesperado, porque sabe que vai para a cadeia. Na verdade, não há apoio internacional, principalmente dos Estados Unido. Sem esse apoio, inviabiliza qualquer possibilidade de um golpe. Ele pode tentar alguma forma de adiar as eleições, como decretar estado de emergência, ele pode, mas eu estou mais otimista e acredito que vai haver eleições, e o Lula será eleito e tomará posse.

E o futuro do país?

É um processo difícil no novo governo, porque o país foi inteiramente demolido pelo “inominável” – costumo evitar citar o nome dele -, então o governo terá que fazer uma grande mobilização nacional para poder reerguer esse país.

Como você avalia o papel da religião no contexto atual, a partir do livro Jesus Militante?

A religião é como “uma faca de dois legumes”, como se diz em Minas, ou seja: serve para oprimir e serve para libertar. O melhor exemplo está no tempo de Jesus. A maior crítica que ele faz é aos religiosos, justamente o pessoal que reagia como os bolsominios hoje: usavam o nome de Deus para oprimir, explorar, marginalizar, excluir…então a religião tem sido muito usada pela direita e a esquerda sempre teve uma certa dificuldade de lidar com o fenômeno religioso. Isso mudou muito depois da entrevista que fiz com Fidel [Castro, presidente de Cuba, já falecido], que está contida no livro Fidel e a religião, editado aqui no Brasil pela Companhia as Letras.

Houve uma mudança, mas a esquerda ainda tateia, tanto em lidar com o fenômeno religioso quanto com as redes digitais. São dois fatores estratégicos com os quais a esquerda ainda é aprendiz, enquanto a direita é mestre, só que ela vai para o mal e não do lado do bem.

Então, uma vez o Lula eleito, ele vai tratar do sistema religioso como tratou nos governos do PT, com muito respeito e, ao mesmo tempo, respeitando essa divisão entre igreja e Estado. A autonomia do mundo religioso, utilização, e sabendo fazer a distinção entre fé e política e, ao mesmo tempo, a unidade. O Lula ontem (dia 28) rezou o Pai Nosso em um ato, no Piauí, onde tinha 20 mil pessoas.

Então, na vida pessoal, a gente não tem como fazer essa separação, mas na vida política, institucional, ela tem que ser feita, é uma conquista de modernidade, que estados e partidos sejam laicos, não tenham confessionalidade. É um erro quando se confessionaliza a política e quando se partidariza a religião.

Você credita a essa prática o crescimento da direita no Brasil e distorção e fascistização do próprio evangelho, por meio de fake news e outros meios?

Sim, é um dos fatores, na medida em que muitas igrejas evangélicas e também alguns sacerdotes católicos são meros oportunistas, correndo atrás do dinheiro. Então, assim como a Igreja Universal apoiou o governo Lula interessada na concessão de rádios e TVs, hoje eles apoiam esse governo, também por interesses pecuniários e de veículos de comunicação. Pode ser que amanhã eles mudem de posição, mas isso bancaria, como diria o Paulo Freire. Portanto, eu conheço pessoas pobres que vão votar no inominável, porque entendem que a voz do pastor é a voz de Deus. Como tem também alguns fundamentalistas na Igreja Católica que acham que a voz do padre ou do bispo é a voz de Deus.

E daí o refrão bolsonarista “O Brasil acima de todos. Deus acima de tudo”, que vai levando as pessoas…

Eu acho que esse refrão, como qualquer palavra de ordem, não quer dizer nada, porque Deu está acima das intenções e dos corações dessa gente. Porque eles não vivem os valores da fé. Eu sempre digo: não basta ter fé em Jesus, é preciso ter a fé de Jesus, como digo nesse livro Jesus Militante. Porque ter a fé de Jesus é assumir os valores da fé, ainda que você não tenha fé, mas você estará na linha de Jesus, que é o amor ao próximo, a defesa do oprimido, a luta pelos direitos humanos, como está no capítulo 25 de Mateus. O reino de Deus se ancora em dois pilares: nas relações pessoais sociais e na partilhados bens.

Arquivo Pessoal

Obras

Em Jesus Militante – evangelho e a proposta política do reino de Deus, editora Vozes -, Frei Betto analisa o texto historicamente no Evangelho de Marcos. Jesus não veio nem fundar uma igreja nem uma religião, veio trazer um novo projeto civilizatório e político, que ele chamava de Reino de Deus, que a igreja colocou lá no céu, mas na cabeça dele, está lá na frente na história. Por isso Jesus foi cruelmente assassinado pelo reino de Cesar. Anunciar um reino de Deus dentro do reino de Cesar era como falar do socialismo, capitalismo da democracia na ditadura.

O Estranho dia de Zacarias é infanto-juvenil, da Editora Cortez. Ele entra na classe e na floresta, no Século XVI, encontra indígenas e portugueses, e descobre que não houve descobrimento, mas invasão.

Quem é

Frei Betto é doutor Honoris Causa em Filosofia pela Universidade de Havana e em Educação pela Universidade José Martí, de Monterrey. Estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. É frade dominicano, escritor e cronista. Conquistou importantes prêmios literários brasileiros, como o Jabuti, em 1982, pelo livro
Batismo de sangue (Rocco). Nesta mesma data, foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores, que lhe concedeu, em 1985, o prêmio Juca Pato pelo livro Fidel e a religião. 

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