Perly Cipriano, uma das vítimas da ditadura no Estado, critica o governo federal e a autorização para comemorar o golpe
Entidades representativas da sociedade civil organizam para esta quarta e quinta-feiras (31 e 1) vários eventos para lembrar os 57 anos do golpe de 1964, que inaugurou a ditadura militar no Brasil, deixou um rastro de sangue e sequestrou a democracia durante 21 anos. As manifestações, que serão realizadas por meio de debates online e da divulgação de manifestos em defesa da democracia, ocorrem um dia depois da substituição dos comandantes militares pelo presidente Jair Bolsonaro, por não concordarem por outro estado de exceção, abrindo uma nova crise no governo.
Sob o título “Lembrar para não repetir”, manifesto de várias entidades civis e lideranças, incluindo do Espírito Santo, divulgado nesta terça-feira (30), ressalta que “não é mera semelhança entre o passado, o golpe de 64, e o golpe de 2016”, que resultou na saída da presidenta Dilma Rousseff. “Os atores foram os mesmos. Em 64 o Supremo Tribunal Federal (STF) teve o papel de operar como coadjuvante, no golpe de 2016 foi protagonista (STF e tudo mais), com o MP [Ministério Público] , que fora o braço acusador da ditadura militar, continuou no mesmo papel; e as últimas revelações registram que as elites militares, remanescentes da ditadura militar, também foram protagonistas nas sombras da conspiração”.
O documento lembra que “como há 57 anos, o golpe foi planejado e não obedeceu apenas aos anseios fascistas da direita conservadora e reacionária, mas também aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, que não se conformaram com os Brics, Mercosul e a consequente reorganização internacional do poder, sobretudo, com o Brasil do pré-sal”.
“Todas as pessoas que acreditam na democracia devem estar preocupadas com esse momento difícil, principalmente quando se observa a Justiça autorizar comemorações ao golpe militar, o que é algo surpreendente”, diz o escritor e ativista capixaba Perly Cipriano, uma das vítimas das torturas promovidas pela ditadura, que o manteve preso por 10 anos. Nesta quarta-feira, Perly participa do debate “Golpe militar, democracia e pandemia”, com Ana Caracoche, argentina radicada no Brasil, vítima da ditadura militar em seu país.
Para ele, o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis de sua história, como crescimento das milícias e um governo que tenta “esvaziar os governadores e formar com as polícias militares um Estado dentro do Estado”, comenta, fazendo referência à carta assinada por 16 governadores, na qual “manifestam sua indignação em face da crescente onda de agressões e difusão de fake news que visam a criar instabilidade institucional nos estados e no país. Vivemos um período de emergência na saúde, e a vida de todos os brasileiros está em grave risco”.
Em outro trecho, os governadores esclarecem que, “juntamente com os servidores públicos e profissionais do setor privado, estão lutando muito para garantir atendimento de saúde e apoio social à população. Enquanto isso, alguns agentes políticos espalham mentiras sobre dinheiro jamais repassado aos estados, fomentam tentativas de cassação de mandatos, tentam manipular policiais contra a ordem democrática, entre outros atos absurdos”. Eles protestam contra as “autoridades federais, inclusive do Congresso Nacional, que violam os princípios da lealdade federativa”.
O manifesto das entidades da sociedade civil, entre elas a Associação de Docentes da Universidade Federal (Ufes) e o Fórum Direito à Memória e à Verdade, afirma que a ditadura inaugurada com o golpe de 64 “colocou meio milhão de brasileiros sob suspeição, mais de 150 mil investigados, 20 mil torturados, entre eles 95 crianças/adolescentes, além dessas, 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por militares; 7.670 membros das Forças Armadas e bombeiros foram presos, muitos torturados e expulsos de suas corporações. Cassaram 4862 mandatos de parlamentares, 245 estudantes foram expulsos das Universidades pelo Decreto 477; Congresso Nacional foi fechado três vezes”.
Segundo estimativa, “mais de 20 mil brasileiros, incluindo indígenas e camponeses, foram exterminados entre os 434 mortos/desaparecidos reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade, 42 eram negros e 45 mulheres. Ocorreram 536 intervenções em sindicatos; e foram colocadas na ilegalidade entidades como a União Nacional dos Estudantes (Une), Associação Brasileira dos Estudantes Secundários (Abes) e, inclusive, a Associação Médica do Espírito Santo (Ames).
O golpe
O manifesto “Lembrar para não repetir” recorda os movimentos do golpe militar, iniciados na “madrugada de 31 de março para o dia 1° de abril, quando as tropas do general Olímpio Mourão marcharam de Minas para Rio de Janeiro, em plena insurgência à Constituição e ao comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente da República, João Goulart, para operar no campo militar o golpe em curso”.
“No dia 2 de abril, também pela noite/madrugada, o senador Aldo Moura, presidente do Congresso, declara vaga a presidência, quando o presidente Jango se encontrava em território nacional, no Rio Grande do Sul, e leva o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, ao Planalto, com a presença do presidente do STF, Álvaro Ribeiro da Costa, e lhe dá posse como presidente da República. Consolidado o lado institucional do golpe, e com a mídia, especialmente o Globo, atuando decisivamente, o golpe foi dado como fato consumado, e gerou 21 anos de infortúnio aos brasileiros e ao país, fora um longo período de trevas”.