Helder Gomes, um dos coordenadores do curso de formação política do Triplex Vermelho, aponta desafios para esquerda
A formação política é uma das questões centrais para as organizações de esquerda e um desafio que precisa enfrentgar diversas mudanças da contemporaneidade. Com objetivo de reforçar a formação e reflexão de militantes sociais, o Triplex Vermelho, espaço político e cultural no Centro de Vitória, está promovendo uma série de atividades com quatro minicursos, com inscrições até o dia 31 de janeiro, com participação gratuita, vagas limitadas e inscrições por formulário online.
Com o nome de Quartas no Triplex Vermelho: formação política em temas contemporâneos, o projeto que prevê 12 meses de atividades, teve início com a realização de um seminário introdutório e seguirá com ações às quartas-feiras a partir de fevereiro, tendo quatro eixos centrais: Formação omnilateral e o devir humano; Para entender o Brasil atual; Gênero, sexualidade e diversidade; e A mercantilização da natureza.
“Nosso objetivo é promover espaços e tempos de formação interativa e interdisciplinar, baseada em temas contemporâneos, com foco na difusão da leitura dialética da realidade, a partir do uso de metodologias ativas e de múltiplos recursos didáticos, mesclando instrumentos convencionais com vídeos e técnicas digitais de interação presencial e remota”, diz o convite do curso.
Para saber mais, ouvimos um dos coordenadores do curso, o economista Helder Gomes, doutor em Política Social pela Ufes, sobre os desafios da formação política e questões que envolvem a política brasileira e capixaba.
Você acredita que a esquerda perdeu nas últimas décadas capacidade de fomentar atividades de formação política? Por quê?
Acredito que a formação continuada da militância popular deveria ser uma atividade permanente como forma de ocupar espaços e tempos com mais reflexões acerca de nosso comportamento cotidiano. Sair das rotinas automáticas e refletir, no sentido de voltar-se a si, sobre o sentido da vida em sociedade, é um caminho necessário para o reconhecimento como sujeito coletivo na história, sobre os limites e as possibilidades de transformações mais significativas no curso da vida social.
Tendo dito que a chamada Guerra Fria trouxe, entre outras consequências, o privilégio da propaganda, voltada para a difusão de dogmas forjados de parte a parte, afastando a militância da busca de fundamentação teórica para seus argumentos. O bate-boca sutilmente tomou o lugar da reflexão, facilitando ainda mais a penetração dos apelos dominantes, nos embates ideológicos entre a conservação e a mudança.
As seguidas derrotas das classes populares também tiveram como consequência a cooptação de diversas lideranças populares, no sentido da busca por soluções mais imediatas, motivadas por resultados de curto prazo que contribuem para sua legitimação política enquanto tal. Tal comportamento acaba se incompatibilizando com atividades que promovam uma efetiva reflexão política coletiva, pois, parece ser melhor manter a vida social no automático das rotinas, sem pensar muito sobre a busca por alternativas programáticas. A formação política traz a possiblidade da crítica e da autocrítica e isso nem sempre interessa a quem está no comando das organizações.
Quais considera os principais desafios em termos de conteúdos, formatos e mobilizações para a formação política de base atualmente?
De um lado, há uma grande dificuldade em abrir espaços para atividades de formação política da militância de base. No processo mencionado acima, privilegiou-se a formação de lideranças, nos marcos dos interesses internos à direção de cada movimento popular e sindical. De outro lado, existem grandes obstáculos ao rompimento com a tradição de que o conhecimento é acumulado por formadores, afunilado e posteriormente transmitido aos formandos. Mas, formar não é adestrar!
Senhores e senhoras do conhecimento não abrem mão do monopólio conquistado e isso dificulta a interdisciplinaridade e, também, a verdadeira construção do conhecimento de forma integral e interativa, reconhecendo os formandos como sujeito efetivo, ativo, no processo de formação.
As novas tecnologias digitais têm quebrado algumas dessas tradições, ao tornarem mais viável a construção coletiva, solidária, participativa do conhecimento, deixando cada vez mais nítido a possibilidade de romper com a concepção de formandos como sujeito passivo, mas, ainda existem muitas dificuldades para ouvir mais que falar, como nos indica Paulo Freire.
Como enxerga o Espírito Santo nesse panorama? Quais as particularidades de nossa esquerda dentro da questão da formação política?
Como não poderia deixar de ser, a região capixaba está inserida nesse processo todo e, por aqui, as atividades de formação popular ficaram enfraquecidas durante muito tempo. Aos poucos, essa situação está se revertendo, pois, com a renovação dos quadros de alguns sindicatos, há uma evidente necessidade de novos aprendizados, ao mesmo tempo em que novos espaços e oportunidades estão surgindo, como tem sido o caso do Centro Cultural Triplex Vermelho, o Espaço Thelema, ambos no Centro Histórico de Vitória, entre outras iniciativas de espaços culturais em que nossa equipe tem sido acolhida com muito esmero.
Sobre a parte que você vai ministrar, fala sobre questões como heranças do passado colonial, acumulação violenta, militarismo estrutural, raízes do latifúndio. Quais elementos conectam todas essas questões?
Quando vamos a fundo nesse alerta dos clássicos do pensamento social brasileiro, descobrimos que, sem entendermos o nosso passado colonial, é difícil entendermos o processo inorgânico, incompleto e descontínuo da descolonização e seus desdobramentos até a atualidade. Parece nítido que a opção inicial pela escravização dos povos nativos e, depois, a sua substituição por um grande contingente de escravizados africanos, nada teria a ver com um projeto de nação, uma vez que obedeciam aos interesses vinculados ao exclusivo metropolitano. Porém, é preciso percebermos que a descolonização, iniciada após a fuga da família real [portuguesa] para o Brasil e, depois, consolidada com a formação do Império formalmente independente e da República, tampouco proporcionou algum grau de soberania nacional, suficiente para isso.
A descolonização inorgânica ocorreu no contexto da Segunda Revolução Industrial e da formação de uma nova etapa do capitalismo mundial, o que significava abandonar o antigo sistema colonial, para industrializar a produção de insumos e alimentos voltada para abastecer os grandes centros imperialistas em ascensão. Portanto, as antigas relações coloniais, mantidas a partir do trabalho escravo, já não atendiam aos interesses do grande capital sediado na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, no entanto, era necessário garantir a transferência de riquezas para os grandes conglomerados industriais.
Se a maior parcela das riquezas produzidas no Brasil continuaria sendo transferida para o exterior, a modernização do parque produtivo interno teria que conviver com boa parte das marcas arcaicas, informais e violentas de apropriação das migalhas deixadas aqui e nas demais nações de passado colonial pelo processo de acumulação controlado a partir os grandes centros imperialistas. O Estado brasileiro, republicano, nasce, assim, para promover a modernização combinada com formas violentas de produção e apropriação de riquezas, o que requer um regime político extremamente autoritário, capaz de garantir a ordem a qualquer preço, dando um papel especial para as forças armadas nessa empreitada. Essas são algumas das marcas estruturais, herdadas de nosso passado colonial, que estudaremos no curso.
Você observou em entrevista anterior que o Espírito Santo é um observatório privilegiado para entender o Brasil. Essas questões são mais evidentes aqui? Por quê?
A formação histórica da região capixaba reservou uma defasagem muito grande, especialmente do seu processo de urbanização, em relação à maioria dos estados do Brasil. Aqui a acumulação violenta ganha ainda mais expressão e fica mais evidente, visível, podendo servir de referência para entender melhor o Brasil.
Sobre o militarismo, questão tão em voga atualmente, o que você acredita que os governos de Lula e Casagrande podem e devem fazer para frear essa sanha golpista tão presentes nos quartéis? Além disso, que mudanças estruturais são necessárias para as forças militares?
Espero que o desenrolar do nosso curso contribua para ampliar, no grupo envolvido, o debate sobre o militarismo estrutural no Brasil, a ponto de podermos avançar coletivamente em propostas alternativas para o futuro, considerando a possibilidade de um plano de longo prazo. Não vejo como resolver isso de imediato.
Outra coisa são as mobilizações de policiais estaduais e de membros das forças armadas federais, mais exaltados com suas próprias perspectivas sobre uma suposta necessidade de recrudescimento do autoritarismo no Brasil. Neste caso, penso que as autoridades devem tomar muito cuidado com os verdadeiros interesses dessas provocações. É preciso separar e classificar esses interesses, uma vez que várias investigações têm vinculado parte desses efetivos, inclusive reformados, com operações informais na vida civil, inclusive em atividades paramilitares, milícias etc., em vários estados do Brasil. De imediato, muitos especialistas têm sugerido intensificar as investigações e fomentar o controle interno nas forças, como procedimentos rotineiros, ao contrário do estímulo à expansão das atividades de militares em áreas alheias à segurança, como na educação pública, por exemplo.