Sem posicionamento do Executivo, projeto de lei que sugere abstinência sexual pode ser aprovado em fevereiro
A vereadora Camila Valadão (Psol) enviou um ofício à Prefeitura de Vitória questionando a omissão do Executivo em relação ao Projeto de Lei n. 101/2021, que quer instituir a campanha “Eu Escolhi Esperar”, em Vitória. A matéria, de autoria do presidente da Câmara, Davi Esmael (PSD), se baseia em uma campanha evangélica que sugere a abstinência sexual como estratégia de prevenção à gravidez na adolescência e foi aprovada em novembro. Sem sanção nem veto do Executivo, a matéria pode ser promulgada já em fevereiro.
Camila Valadão pede explicações sobre a falta de posicionamento da prefeitura dentro do prazo. Após a aprovação da matéria na Câmara no dia 9 de novembro, o processo foi protocolado na prefeitura no dia 16 de dezembro de 2021, para sanção ou veto no prazo de 15 dias, o que não ocorreu.
“Queremos informações sobre a tramitação do projeto e o porquê do silêncio do prefeito até agora. Por que a prefeitura não deu um parecer sobre essa proposta? Não existe equipe técnica e especialistas para opinarem no executivo acerca do tema? Ou a gestão é feita de um homem só que não escuta a opinião dos servidores e técnicos capacitados da nossa cidade?”, enfatizou.
A vereadora cobra a divulgação dos pareceres emitidos pelas áreas técnicas da Educação, da Procuradoria e da Saúde, sobretudo da Saúde da Criança. Isso porque, dentro da prefeitura, o projeto teria passado pela Gerência de Atenção em Saúde da Secretaria de Saúde (SEMUS/GAS), pela Secretaria Executiva da Secretaria de Educação (SEME/SE) e pela Assessoria Técnica da Procuradoria Geral do Município (PGM/AT), mas ainda assim foi devolvida à Câmara sem um parecer técnico.
A vereadora Karla Coser (PT) também considerou a omissão da prefeitura absurda. Para a parlamentar, a atitude de Pazolini é motivada pelas relações políticas dentro do município e até pela própria relação de amizade que o líder do Executivo tem com o presidente da Câmara, Davi Esmael.
“É uma questão de lavar as mãos. Tendo consciência de que eles não querem se indispor com uma bancada evangélica, com essa base que dá sustentação ao prefeito, mas também não quer parecer extremamente rigoroso, com uma parcela que não acredita que ele tem esse viés tão bolsonarista. Ficar em cima do muro com certeza é a postura mais confortável para o prefeito, mas é uma atitude muito frouxa, eu diria, falta de responsabilidade e de coragem de assumir de fato a posição”, destaca a parlamentar.
A Câmara de Vitória confirma que não houve posicionamento do Executivo, e, por isso, o projeto vai ser promulgado no próximo mês, conforme estabelecido na Lei Orgânica. “Quando não há manifestação do Executivo no processo, cabe ao Legislativo promulgar. A previsão é de que o projeto seja promulgado no início de fevereiro, após o recesso parlamentar, em um ato solene com a presença do Nelson Júnior”, disseram em nota.
Nelson Júnior, citado na nota da Câmara, é um pastor e conferencista evangélico que lidera o movimento “Eu Escolhi Esperar” no Brasil. Fundada em março de 2011, a campanha defende o início das atividades sexuais apenas após o casamento, posicionamento divulgado em seminários realizados por todo o país.
Acontece que o que antes era uma campanha voltada para jovens evangélicos e católicos, tem tentado se estabelecer como política pública. Um projeto semelhante ao de Vitória tramitou na Câmara de São Paulo em 2021, mas foi adiado em junho, após falta de consenso entre os parlamentares sobre substitutivos apresentados ao texto. Por lá, a proposta é de autoria do vereador Rinaldi Digilio (PSL-SP). Segundo ele, mais de 30 cidades brasileiras já replicaram a proposta.
“Quando se fala em abstinência não se fala em proteção”
O texto aprovado na Câmara de Vitória sugere a realização de palestras com profissionais de saúde e educação abordando os objetivos do programa e defende a divulgação de materiais explicativos para os adolescentes, “esclarecendo eventuais causas, consequências e formas de prevenção da gravidez precoce”.
A psicóloga Iasmyn Cerutti, integrante do coletivo Resisto-ES, não considera a proposta eficiente. Ela afirma que uma política de promoção da prevenção, com estratégias de educação sexual, são mais eficazes no combate à gravidez precoce.
“Eu acredito ser muito difícil esse projeto ter algum êxito em diminuir os índices de gravidez na adolescência, pois quando se fala em abstinência não se fala em proteção. A sexualidade já está aí, ela é inerente ao ser humano. Historicamente falando, quanto mais se tentou inibir a sexualidade ao longo da história, mais foi que se falou de sexo”, enfatiza.
Iasmyn também aponta que o contexto atual, com a grande difusão de informações e acesso irrestrito a todo e qualquer tipo de conteúdo pela internet e afins, torna essa política muito mais difícil. “O adolescente vai buscar a informação em qualquer lugar, uma informação que deveria estar sendo dada de forma mais contundente nas escolas”, ressalta.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também já se manifestou contra a promoção da abstinência sexual como método de prevenção à gravidez na adolescência. Em 2020, quando o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) anunciou uma campanha nos mesmos moldes, o conselho recomendou que a iniciativa fosse cancelada, argumentando a ineficácia e falta de comprovações científicas para utilização do método.
“Não se consegue impor a ninguém a abstinência sexual como meio de se prevenir a gravidez na adolescência, uma vez que as pessoas iniciam a vida sexual quando se tem desejo e, preferencialmente, estejam preparadas para tanto”, afirma um trecho da recomendação do CNS.
No caso do projeto em Vitória, apesar de o incentivo à abstinência sexual não ter sido explicitamente citado ao longo do texto, a utilização do mesmo nome da campanha evangélica e a própria participação do pastor na construção da proposta preocupa parlamentares e especialistas. Na própria página do movimento nacional “Eu Escolhi Esperar”, está descrito que a campanha foi criada com o propósito de encorajar, fortalecer e orientar os solteiros cristãos a esperarem até o casamento para viverem suas experiências sexuais”.
Em novembro, quando a Câmara aprovou o projeto de Davi Esmael, Camila Valadão definiu a proposta como um “cavalo de troia”, estratégia utilizada pelos parlamentares para inserir pautas conservadoras no debate público. Ela e a vereadora Karla Coser foram as únicas a votar contra o projeto.
“A nossa posição vai ser de cobrança. A gente acredita que o dinheiro público não deve ser dispensado em um projeto que não vai ter o efeito que a gente quer. A concordância é a mesma. Todos queremos reduzir os índices de gravidez na adolescência, mas um projeto como esse deve ficar restrito às paredes das igrejas, de quem acredita nisso de fato, e não ser instituído como uma política pública”, declara.