‘Eu estava em Veneza, na Ponte dos Suspiros; um palácio e uma prisão em cada mão’
Meus planos para visitar as pirâmides do Egito nada têm em comum com o turista ocasional, que se contenta com algumas fotos para mostrar a familiares e amigos menos afortunados. Por que não inovar? Levei na bolsa uma bandeira brasileira e num momento de distração dos vigias escalei a milenar montanha de pedra, para espanto da massa de turistas ao redor. Imaginem os Ohs e Ahs! Um guarda gritou algo em árabe, mas como não falo a língua continuei subindo, embora os fuzis apontados em minha direção tenham uma linguagem universal. A multidão em volta me aplaudiu com entusiasmo, portanto, valeu.
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Enquanto mais turistas e mais guardas acorriam perplexos para assistir minha escalada – fui bem preparada, treinei durante anos – cheguei ao topo da maior das três: 174 metros acima do mar de areias brancas e escaldantes. Um edifício de 50 andares, portanto, imagina a vista lá do alto: um oceano de areia ondulando como serpentes correndo para o Nilo Azul. Ou era o cor de rosa? De longe não deu para definir bem a cor. Sob aplausos da massa desfraldei a bandeira brasileira, instalando-a no topo da pirâmide e prendi com o estoque de fitas adesivas que levei comigo. Na chegada ao Egito o sujeito da alfândega desconfiou que era contrabando, mas expliquei que a rótula do meu joelho estava solta. Passei sem mais problemas.
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Mas outro problema me aguardava: levei fitas made-in-China, e antes mesmo dos guardas me pegarem minha bandeira já tinha voado, indo se instalar na enigmática face da Esfinge de Gizé: Tira isso daqui ou te devoro. Expliquei – para os guardas, não para a esfinge – que não era cidadã americana (entrei com o passaporte brasileiro, claro) e em vez de me jogarem numa masmorra, criando mais um problema internacional para o Trump, me condenaram a passar uma noite sozinha dentro da pirâmide. Dá para imaginar o cheiro e a escuridão?
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Não tenho dons literários para bem descrever o horror dessa noite, muito pior do que a que passei na também famosa Prigioni Nuove, em Veneza, ou Prisão Nova, que não sei porque ganhou esse nome uma vez que foi a primeira no mundo construída para ser uma prisão. Fica ao lado do Palazzo Ducale, o Palácio Ducal, e a ligação entre esses dois extremos é a Ponte dos Suspiros, uma das mais belas do mundo. Os turistas adoram. Lord Byron escreveu: “Eu estava em Veneza, na Ponte dos Suspiros; um palácio e uma prisão em cada mão.”
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Eu estava em Veneza, na Ponte dos Suspiros, e tendo levado dois sprays de tinta acrílica, verde e amarelo, adornei a famosa ponte com as cores do nosso Brasil. Sendo que os turistas brasileiros são responsáveis pela quarta parte da economia local – além do lixo que espalham por onde passam – achei justo registrar minha passagem definitiva pela cidade. A polizia não entendeu bem o meu gesto, e fui condenada a passar uma noite em uma cela da prisão, com o teto tão baixo que nem sentada eu podia ficar. Um bom modo de evitar a superpopulação das prisões modernas: ali o encarcerado morria cedo.
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O conjunto de pirâmides de Gizé é um dos maiores testemunhos da soberba humana, mas também de respeito familiar: a maior é do pai, a segunda do filho, a terceira do neto: nenhum fez a sua maior que a de seu ancestral. As rainhas, como sempre, ganharam as menores. Quando todos os vestígios da humana espécie desaparecerem do mapa mundi, suponho que apenas três monumentos de pedra continuarão de pé: as pirâmides de Gizé, a muralha da China, Machu Picchu. Nada sabemos sobre vidas passadas, se é que existiram, mas gosto de imaginar que lá estive, ou talvez tenha até participado em sua construção, seja como carregador de pedras ou o engenheiro que as imaginou. Em qualquer dos casos, nenhuma chance de que fosse uma mulher.