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‘A minha família ficou pobre. Eu queria que a Justiça nos socorresse’

Fotos: Leonardo Sá

No calor da mobilização iniciada no norte do Estado em função da iminência de chegada do óleo que já contaminou dois mil quilômetros de praias no norte e nordeste do país, Século Diário traz à tona relatos ainda não publicados de mulheres que tiveram suas vidas e de suas famílias devastadas pela exploração do petróleo na foz do Rio Doce, bem como a fúnebre expectativa de chegada das petroleiras no sul capixaba, onde os mesmos velhos erros históricos dessa indústria predatória e excludente podem ser cometidos. 

A série de reportagens leva o nome da campanha Nem Um Poço a Mais, iniciada no Espírito Santo e empenhada hoje por dezenas de entidades que representam comunidades e profissões diretamente afetadas pela indústria do petróleo no litoral brasileiro, além da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).

Nesse primeiro capítulo, contamos histórias colhidas em Regência, vila pesqueira situada na foz do Rio Doce, em Linhares, narradas por Kátia Alice Alvarenga e D. Darília da Vitória Siqueira. 

Para além de todos os impactos sociais, ambientais e econômicos advindos da instalação da Petrobras na região, na década de 1970, que são vividos por todos os moradores, Kátia, especialmente, sofreu de forma ainda mais incisiva esses danos, pois o sítio de sua família foi desfigurado pela perfuração em busca de petróleo, atualmente desativados. A seguir trechos de seu triste relato, transcritos na integra, preservando sua fala direta e simples, carregada de dor e esperança. 

Felicidade 

“Quando Petrobras chegou eu tinha onze anos. Com onze anos, a minha família era feliz mesmo. Nós vivia da agricultura familiar: nós plantava abacaxi, nós plantava abóbora, nós plantava melancia, nós plantava aipim, minha mãe tinha horta, colhia temperos, colhia quiabo, colhia jiló, batata-doce, colhia as coisas”.

“Ninguém sabia o que era”

“Primeiro chegou a Chevron que veio pra fazer pesquisas. O prefeito de Linhares chamava Samuel Batista Cruz, tio de Zé Carlos Elias hoje. O prefeito fez reunião com os pais da gente na época. Falavam que a Chevron tava chegando e que ia melhorar tudo pra nós aqui. Aquele que não tinha emprego ia ter emprego. Quem não era capacitado ia ser capacitado pra trabalhar na empresa. A Chevron chegou, fez reunião com o prefeito, todo mundo concordou, ninguém sabia o que que era”. 

“Aí começaram a estourar as bombas…”

Minha mãe pegava o barco de manhã cedo e saía pra pescar. Quando era umas dez e meia, minha mãe chegava com o peixe, ela limpava, fazia o almoço e dava o almoço pra gente. (…) E eu lembro que minha mãe chorava, que estourou as bombas, matou peixe, peixe, peixe … os peixes que minha mãe pegava pra nós comer, veio a mortandade. Hoje não acha a cumbaca aqui, e jundiá. Jundiá e cumbaca desapareceu e a cará. Era os peixes que nossos pais criou nós com esses peixe. Essas três. A cará, jundiá e cumbaca, foi a Chevron que matou. Morria e os urubus comia comia comia, que morria morria morria, aqueles peixe morto, minha mãe chorava, chorava, chorava … É o primeiro impacto que o rio Preto [afluente do Rio Doce] sofre da Petrobras”. 

“Hoje nós temos ainda a traíra no meio do petróleo, o murobá, piau, a curmatã. Mas o que que acontece, se você pegar uma curmatã hoje dentro do rio Preto, você pegar uma traíra, a traía pode tá bonita … mas tem gosto de petróleo a carne da traíra. Não tem mais como se consumir o peixe do rio Preto. Isso antes da Samarco chegar [a lama de rejeitos que veio da barragem de Fundão, em Mariana/MG] . Você cava um poço pra tomar água, o poço tem a nata do petróleo. O gosto do gás tá na nossa água”. 

Tentativas de estupro

“Quando começou os peão a andar de firma, esse foi primeiro impacto que nós sofremos. Eu tive duas irmãs, correram em cima dela. Minhas irmãs indo levar café pro meu pai na roça. Aí um peão da própria empresa correu em cima da minha irmã e correu, correu … uma chegou em casa com a roupa toda rasgada, a outra entrou dentro de uma moita de espinho, que meu pai teve que buscar ela dentro da moita de espinho. Ela ficou tão traumatizada, que ela não saiu de dentro da moita, que ela pensava que ela ia sair de dentro do espinho e o cara ia pegar ela. Quando meu pai chegou pra tirar ela dentro da toça de espinho, pela volta da toça tava toda cheia de rastro, que o camarada procurando ela, aonde ela tinha entrado, mas não achou. Ela ficou no pezinho do espinho, pai teve que cortar de facão pra tirar ela. Isso foi uma das primeiras coisas que aconteceu”. 

Meu pai veio ter uma tristeza muito grande. Meu pai quando aconteceu isso, meu pai procurou o chefe da empresa e falou que as filhas dele tinha liberdade de ir pra escola, tinha liberdade de levar café na roça, e ele tava vendo que a liberdade dos filhos dele tinha acabado e ele falou: como que ele ia mandar as filhas dele pra escola? Não tem como. Meu pai tirou nós da escola. Por causa das carrera que as minhas irmãs levou, meu pai tira todo mundo da escola. Só deixou os meninos homens, mas acabou tirando os menino homem quando viu que eles tavam correndo risco de estupro também. Acabou ficando todo mundo sem poder vir pra escola. 

Contaminação 

“O nosso solo daqui está totalmente contaminado de petróleo. Você pode furar em qualquer lugar aí pra ver a nata que dá. Isso tudo depois que a Petrobras chegou aqui”. 

“Abriram uma cratera bem grande, enterrou os sacos, as luva, os produto que era usado, tá tudo debaixo dessa propriedade. Se vocês pensar no veneno que tem debaixo dessa propriedade vocês não tem noção”. 

“E a riqueza não aparecia”

“Só no terreno do meu pai são 38 furos. Tem um lugar que foi refinaria que ainda hoje eles carregam o gás que sai nas carreta pra estudo. E debaixo do chão não paga a minha família. Com a morte da minha mãe. Morreu primeiro meu pai, minha mãe ficou debatendo com eles, minha mãe recebia sete mil por todos os poço, tudo que tinha. São quinze irmãos. Dividiu esse dinheiro dá quatrocentos e pouco por mês, é uma bolsa-família. É doído você não poder trabalhar no que é seu”. 

“E a riqueza não aparecia. Nunca aparecia a riqueza, nunca aparecia proposta dos filhos poder estudar aquilo que eles tinha prometido que ia chegar”. 

“A minha família ficou pobre. Eu queria que a Justiça nos socorresse. Nós nascemos nessa propriedade, se criemo nessa propriedade, tirou nosso direito de estudar porque as minhas irmãs chegaram a peão da empresa correr, quase tive irmã estuprada, não tive porque meu pai tirou da escola. 

Não tinha liberdade pra levar um café na roça, nós apanhava, mãe batia tanto em nós por causa dos peão da Petrobras! Em vez de mãe reclamar com os peão, mãe já tinha tanto trauma que mãe batia em nós por causa dos peão. Nós passemo a apanhar muito por causa dos peão da empresa. Acabou nossa liberdade. Os filho que não apanhava passou a apanhar, porque minha mãe tinha medo de ser estuprada as meninas, mãe com nove filha mulher dentro de casa e seis filho homem, era 15 o total dentro de casa. 

Nós que juntava melancia na roça com meu pai, juntava abóbora, juntava abacaxi, paramo de ir pra roça. Depois de ter uma propriedade toda pra nós andar, tirou nossa liberdade, nós fomos criado preso. E não podia produzir mais nada por causa da Petrobras. 

Paramos de produzir, paramos de viver, apareceu muita doença, nervosismo na família que não tinha. Hoje quase todo mundo tem problema. Minha mãe começou a oprimir muito a gente por causa dos peão, e aquilo mexia com o sistema nervoso da gente, então todas as minhas irmãs tem problema, principalmente as mulheres, que as mulheres eram mais maltratada que os homens, ficava mais presa. Mãe não conseguia formar as filhas por causa disso. 

Queria que o Ministério Publico fizesse uma investigação pra descobrir porque minha família ficou pobre. Quando trabalhava na agricultura, a gente vivia muito bem na agricultura. A minha mãe chegou a conta de passar fome, até requerer um valor deles aí, minha mãe passou fome”. 

Dona Darília

Ainda em Regência, conversamos com Dona Darília da Vitória Siqueira, de 67 anos, filha de uma índia botocuda dos Comboios, mãe de 14 filhos, avó de 15 netos e bisavó de seis bisnetos. 

Perguntada sobre o que o petróleo trouxe de bom para a comunidade, ela nos falou de frustrações e problemas: 

Peixe 

“Graças a Deus tenho orgulho de dizer que sou tratadeira de peixe. Não tem peixe que eu não trato. Pergunto se é filé, se é aberto, se é fechado, se é postejado ou se é pra salgar. Agora não tem mais peixe, né, mas eu acordava de manhã cedo, só tava o bilhetinho. Eu não sei ler, então meu filho falava: é pra fulano e é pra fazer assim assim assim. E eu picava a faca. Tal hora vem buscar, tava tudo certinho. Podia ser a quantia de peixe que fosse, vinte, trinta quilos de peixe, era rapidinho. Hoje não tem mais peixe, pega pouquinho de peixe. Quando pega vinte, trinta quilos, diz: ‘ih, fulano pegou muito peixe!’ Eu, hein! Que pouquinho de peixe! Antigamente era brincadeira, não, era muito mesmo, uma montoeira de peixe, era robalo, e eu criada aqui comendo peixe e hoje em dia não como um pedaço de peixe”. 

Emprego 

“Pra certos homens foi bom, mas pras mulheres não foi não, minha filha. Até hoje não tem emprego pras mulheres. (…) Eu peço a Deus que eles desse serviço pra esse pessoal que tá aqui. Criança, rapazinho novo sai daqui pra trabalhar em Linhares. É muito triste e dolorido! Filhos, netos, tem tudo que sair pra trabalhar. Muita gente aqui que tem curso, mas não interessa o curso, se não tem serviço pra trabalhar”.

 

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