O relato é da agricultora orgânica Flávia dos Santos, tesoureira da Associação Quilombola de Pequenos Produtores Orgânicos do Angelim II e coordenadora financeira da ONG Associação de Programas Alternativas em Tecnologias Alternativas (APTA).
A Associação Quilombola foi a primeira a receber, há quatro anos, a certificação de produção orgânica dentro do Território Tradicional Quilombola do Sapê do Norte, localizado entre os municípios de Conceição da Barra e São Mateus, no norte do Estado.
Os associados trabalham basicamente com hortaliças, frutas, verduras e milho para alimentação das criações de aves e suínos. Vendem na feira de Conceição da Barra e já participaram dos Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Alimentação Escolar (Pnae). Hoje, possuem contratos com o programa de Compra Direta da Agricultura Familiar (CDA) da Prefeitura de Conceição da Barra.
Mas muitos processos, que são abertos pelo Centro de Referência em Assistência Social (Cras) de Braço do Rio, desapareceram, bem como as notas fiscais. “Tem quatro meses que não recebo”, diz Flávia dos Santos. “A coordenadora do Cras [Dineide Santana de Jesus] perdeu minhas notas fiscais. Passei o dia todo na prefeitura e eles não estão nem aí. Não acharam nem o meu processo de pagamento”, denuncia.
Nos Termos de Recebimento e Aceitabilidade do Município, com a descrição dos itens já entregues por Flávia, a assinatura do responsável pelo recebimento dos produtos é de Renata Gambarini Medeiros.
O início das entregas foi no dia 17 de abril, quando uma reunião definiu para os agricultores as entregas quinzenais e os pagamentos mensais. Mas, a pedido da coordenação do Cras, as primeiras notas fiscais só poderiam ser emitidas a partir de 29 de junho. “Questionamos, mas aguardamos. A partir do dia 1 de julho emitimos as notas e foram entregue para a coordenadora do Cras na Secretaria de Assistência Social em Conceição da Barra. E ate hoje não recebi nada”, relata a agricultora.
Desde então, já foram várias idas à cidade para tentar receber, sem sucesso. “As notas e os termos são entregues para a coordenadora dos Cras, sem nenhum protocolo”, descreve.
Na última tentativa, no dia 1 de agosto, após mais um dia inteiro de espera, alguns agricultores conseguiram receber, às 16h. “Muitos não receberam, alguns têm erro no processo, mas outros, como eu, nem foi protocolado”, protesta.
A via–crucis naquela quinta-feira foi ainda mais penosa, envolvendo também a prefeitura municipal. “Encontrei o vice-prefeito [Jonias Dionísio Santos] na saída, expliquei minha situação pra ele, disse que queria receber naquele dia, ele me respondeu que não sabia, que teria que esperar achar meus documentos. E simplesmente foi embora. Conversei com o secretário administrativo, encaminhou uma pessoas pra me ajudar a procurar, ela tentou mas não pôde fazer nada pois não achou nenhum protocolo em meu nome”, narra Flávia.
Por fim, num último telefonema à coordenadora do Cras, um pedido para enviar a segunda vias das notas fiscais e mais uma promessa de pagamento, desta vez para a próxima quinta-feira (8).
Sem dinheiro sequer para pagar as passagens de volta pra casa, com a filha, depois de um dia inteiro sem se alimentar e com energia cortada em casa, Flávia desabou em lágrimas. Ninguém na Prefeitura nem no Cras lhe ofereceu ajuda, visto que seu pagamento, novamente, não foi efetuado, passados quatro meses de trabalho. “Tive que ir na casa de parente e pedir dinheiro para voltar pra casa. Eu chorei de raiva’, diz.
“Ninguém deu a mínima para as minhas necessidades. Eu não fui lá pedir dinheiro, nem cesta básica e nem emprego. Fui receber o que é meu de direito e me deparei com pessoas que tratam mulher, pobre, agricultora, com muita falta de respeito e consideração. Me senti humilhada “, desabafa.
Discriminação
O tratamento insatisfatório destinado aos agricultores quilombolas pelos órgãos públicos vem de longa data. Como já relatado em Século Diário, os próprios representantes dessas instituições já reconheceram a discriminação e prometeram sanar os problemas.
E os quilombolas, agricultores agroecológicos, muitos com certificação orgânica, como Flávia Santos, produtores de água no Território do Sapê do Norte, cercados pelo deserto verde de eucaliptais industriais para exportação, esperam. Até quando?