Sábado, 20 Abril 2024

Ana Martins Marques e a poesia cotidiana

Ana Martins Marques e a poesia cotidiana

Na poética do espaço, Ana Martins Marques nos dá como tema o espaço do lar, a imagem poética da casa, aqui mais uma vez reforçando a relação de parte da poesia contemporânea brasileira com temas do cotidiano. O espaço interior, a imagem do dentro, ao mesmo tempo, está aqui fora do mundo, o limiar entre uma vivência particular, o dentro, entra neste contraste com o mundo exterior, criando este limiar entre uma poesia íntima e o que fica fora deste lugar particular.


Em poemas como Arquitetura de Interiores, do livro A Vida Submarina, temos este contraste entre dentro e fora, com a ideia de limiar tencionando todo o poema. E neste mesmo livro há toda uma série com este tema da casa, com a porta sempre como este limiar que tenciona a casa com o mundo exterior.


Na poética de Ana Martins Marques, temos toda uma série de utensílios que irão compor a sua paisagem de poemas do cotidiano, desde xícaras lascadas até encanamentos, com a poesia dos utensílios ou a poesia das coisas aqui virando, de modo amplo, a poesia da casa. Com o tema do cotidiano em Ana Martins Marques, temos uma herança que vem do Modernismo, e que passa, claro, por Ana Cristina César, esta influência indisfarçável para muitos poetas brasileiros contemporâneos, sem demérito, ao contrário, e que também vem de Chacal, Cacaso e Adélia Prado.


Temos, também, nos poemas de A Vida Submarina, a imagem da casa como fonte da memória e não apenas de um ímpeto objetivo e de uma poesia descritiva, a imagem dos afetos e a relação memorial de objetos com vivências, também amorosas, aparecem nesta poesia do cotidiano de Ana Martins Marques. O espaço da casa, que tem, de um lado, nostalgia amorosa, também vira campo de anelo e sonho, uma paisagem imaginada ideal, impulsionando o poema que parte deste espaço particular.


Em Da Arte das Armadilhas, a concentração objetiva deste cotidiano, de uma poesia da casa, aumenta, aprofundando um microcosmo que aqui aparece com mais nitidez do que em A Vida Submarina. E finalmente, em O Livro das Semelhanças, esta relação entre dentro e fora se intensifica de modo mais amplo, com o tema metapoético do poema e do livro, culminando em poemas cartográficos, com o tema do mapa como o “fora” que a poesia busca.


Um ponto interessante é também de como a poeta vai edificar a sua subjetividade a partir deste espaço da casa, pois, partindo de uma linguagem cotidiana, inicialmente descritiva, logo vemos se desenhar nos poemas de Ana Martins Marques sobre a casa, a sua condição subjetiva, tanto de memória como de sonho, e a construção de sua reflexão pessoal partindo deste espaço de subjetivação particular que é do verbo habitar e que vem do substantivo casa.


A poesia de Ana Martins Marques, por fim, compõe um espaço de subjetivação e construção do eu lírico que não se limita numa poesia da casa e do cotidiano tomada como simples descrição objetiva e comezinha, mas como lugar em que a poeta reconfigura seu espaço objetivo e familiar e nos aponta para algo desconhecido.


Tal rearranjo cotidiano é próprio da linguagem poética, se confrontando com sua reflexão subjetiva e o choque desta com o mundo objetivo da casa, uma poesia com precisão nos detalhes que, ao fim, coloca a poeta nesta tensão entre sua casa e o mundo, uma poesia do dentro e do fora que reconfigura a realidade com uma poesia atenta aos detalhes e que se forja entre o eu lírico e uma interação deste com o cotidiano, agora redesenhado pela linguagem poética.


POEMAS 


SEM TÍTULO: O poema vem com o tema do mapa, este contato da poesia de Ana Martins Marques com o mundo, com o que está fora, no que vem : “E então você chegou/como quem deixa cair/sobre um mapa/esquecido aberto sobre a mesa/um pouco de café uma gota de mel/cinzas de cigarro/preenchendo/por descuido/um qualquer lugar até então/deserto”. E seu interlocutor, aqui incógnito, deixa seu rastro no mapa, como que preenchendo o vazio, seja o deserto do mapa, ou um deserto na poeta que ali olhava o mapa.


SEM TÍTULO: O poema fala sobre a dobra do mapa que aproxima cidades distantes e corações que desejam se encontrar, o mapa dobrado junta o que tá longe, no que temos : “Você fez questão/de dobrar o mapa/de modo que nossas cidades/distantes uma da outra/exatos 1720 km/fizessem subitamente/fronteira”. A fronteira que se faz aqui é do gesto de dobrar um mapa, distância que aqui acaba neste gesto poético.


SEM TÍTULO: O mapa aqui aparece mais uma vez como a indicação do caminho para um encontro, no que vem : “Você assinala no mapa/o lugar prometido do encontro/para o qual no dia seguinte me dirijo”. O lugar assinalado logo vira a pressa do desejo, sempre este afoito, que esquece o mapa sobre a mesa, viagem perdida, no que temos : “a pressa feroz do desejo/deixando no entanto esquecido sobre a mesa o/mapa que me levaria/onde?”.


SEM TÍTULO: O poema tem o mapa do mundo aqui descrito de modo físico, disposto de forma que pode ser modificado ao gosto da poeta, no que temos : “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem/mas posso esquecer uma laranja sobre o México/desenhar um veleiro sobre a Índia”. Ana Martins Marques tem aqui a onipotência de manipular seu mapa ao bel prazer, no que segue : “duplicar a África com um espelho/criar sobre o Atlântico um círculo de água/pousando sobre ele meu copo de cerveja/circunscrever a Islândia com meu anel de noivado”. A intervenção física do mapa como um papel disposto aqui vira imagem de poder à poeta de revirar um mundo inteiro com pequenos gestos, no que temos : “visitar os nomes das cidades/levar o mundo a passeio/por ruas conhecidas/abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse/apenas para que tome/algum sol”.


SEM TÍTULO: O poema aqui, mais uma vez, usa da imagem do mapa como fonte para a imagem poética do encontro, no que temos : “Viajo olhando pela janela do ônibus/em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ou dos nomes luminosos das cidades”. O poema segue aqui com o estudo detido da poeta sobre o mapa como modo de encontrar o caminho ao seu interlocutor, no que temos : “e eu passava horas estudando/todos os caminhos que me levariam até você/mas nos mapas eu nunca te encontrava”. A poeta aqui especula, sonha, delira, e na conjectura tenta realizar um anelo meio solto, que fica neste poema, ao ver do mapa a sua esperança de um caminho direto : “talvez você me espere na rodoviária/talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus/assim que descer vou entregar nas suas mãos/emboladas num novelo/as linhas desfeitas das fronteiras e/como as contas luminosas de um colar/cada um dos nomes das cidades”.


SEM TÍTULO: O poema segue com o tema do mapa, agora como um efeito da chuva que influi toda a descrição poética que o poema desenha, aqui também com a imagem física do mapa fazendo uma linha com sua associação com o que o mapa representa, no que segue : “Abro o mapa na chuva/para ver/pouco a pouco/diluírem-se as fronteiras” (...) “as cores confundidas/nem parecem mais aleatórias” (...) “agora há um grande lago/onde antes havia uma cordilheira/o mar não é mais molhado/do que o deserto logo ao lado”. O mapa, tomado como objeto físico, ganha a sua proporção gigante de descrição do mundo, interagindo este microcosmo com uma vastidão de fronteiras e países, entre insetos que dominam o cenário, e que Ana Martins Marques aproveita aqui para brincar de modo genial, no que temos : “Deixo depois o mapa/para secar ao sol/sobre a grama do jardim/mais rápidas do que aviões/as formigas atravessavam/de um continente a outro/uma lagarta riscada/apossou-se das Coreias/agora unificadas/um tapete de folhas/cobre o mar Egeu/e o rastro de uma lesma umedeceu/o Atacama”. E diante desta festa da natureza, a poeta deixa o mapa para um pequeno inseto novo lhe dar a feição, ao fim este mapa se dobraria sobre si mesmo, revelando lugares secretos, no que temos : “Penso que se deixasse o mapa aí/tempo o bastante/em algum momento surgiria/quem sabe/um pequeno inseto novo/com esse dom que têm os bichos/e as pedras e as flores e as folhas/de imitarem-se/uns aos outros” (...) “Quando enfim/fechássemos o mapa/o mundo se dobraria sobre si mesmo/e o meio-dia/recostado sobre a meia-noite/iluminaria os lugares/mais secretos”.


POEMAS 


SEM TÍTULO


E então você chegou


como quem deixa cair


sobre um mapa


esquecido aberto sobre a mesa


um pouco de café uma gota de mel


cinzas de cigarro


preenchendo


por descuido


um qualquer lugar até então


deserto


 


SEM TÍTULO


Você fez questão


de dobrar o mapa


de modo que nossas cidades


distantes uma da outra


exatos 1720 km


fizessem subitamente


fronteira


 


SEM TÍTULO


Você assinala no mapa


o lugar prometido do encontro


para o qual no dia seguinte me dirijo


com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô


a pressa feroz do desejo


deixando no entanto esquecido sobre a mesa o


mapa que me levaria


onde?


 


SEM TÍTULO


Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem


mas posso esquecer uma laranja sobre o México


desenhar um veleiro sobre a Índia


pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma


como se fossem unhas


duplicar a África com um espelho


criar sobre o Atlântico um círculo de água


pousando sobre ele meu copo de cerveja


circunscrever a Islândia com meu anel de noivado


ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele


uma moeda média


visitar os nomes das cidades


levar o mundo a passeio


por ruas conhecidas


abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse


apenas para que tome


algum sol


 


SEM TÍTULO


Viajo olhando pela janela do ônibus


em busca das linhas vermelhas das fronteiras


ou dos nomes luminosos das cidades


pairando sobre elas


como nos mapas


neles não ventava nem chovia


e nunca era noite


e eu passava horas estudando


todos os caminhos que me levariam até você


mas nos mapas eu nunca te encontrava


chego em duas ou três horas


o coração no peito como um pão


ainda quente na mochila


talvez você me espere na rodoviária


talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus


assim que descer vou entregar nas suas mãos


emboladas num novelo


as linhas desfeitas das fronteiras e


como as contas luminosas de um colar


cada um dos nomes das cidades


 


SEM TÍTULO


Abro o mapa na chuva


para ver


pouco a pouco


diluírem-se as fronteiras


as cidades borradas


diminuem de distância


as cores confundidas


nem parecem mais aleatórias


perderam aquele modo abrupto


com que as cores mudam nos mapas


agora há um grande lago


onde antes havia uma cordilheira


o mar não é mais molhado


do que o deserto logo ao lado


 


Deixo depois o mapa


para secar ao sol


sobre a grama do jardim


mais rápidas do que aviões


as formigas atravessavam


de um continente a outro


uma lagarta riscada


apossou-se das Coreias


agora unificadas


um tapete de folhas


cobre o mar Egeu


e o rastro de uma lesma umedeceu


o Atacama


uma formiga enamorou-se


de um vulcão


exatamente do seu tamanho


um dos polos


ficou à sombra


e resfriou-se mais que o outro


de longe não sei se são moscas


ou os nomes das cidades


 


Penso que se deixasse o mapa aí


tempo o bastante


em algum momento surgiria


quem sabe


um pequeno inseto novo


com esse dom que têm os bichos


e as pedras e as flores e as folhas


de imitarem-se


uns aos outros


um pequeno inseto novo


eu dizia


um novo besouro talvez


que trouxesse desenhado nas costas


o arquipélago de Cabo Verde


ou as finas linhas das fronteiras


entre a Argélia e a Tunísia


 


Quando enfim


fechássemos o mapa


o mundo se dobraria sobre si mesmo


e o meio-dia


recostado sobre a meia-noite


iluminaria os lugares


mais secretos


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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