Sexta, 26 Abril 2024

Ana Martins Marques e suas influências

Ana Martins Marques e suas influências

A poesia de Ana Martins Marques tem como tema principal o trabalho de representação das coisas, sua figuração, um modo de redesenhar poeticamente objetos e coisas que aparentemente estão tomadas em si mesmas como suficientes, acabadas, contidas num mundo objetivo bem resolvido, e que na poesia de Ana ganha contornos novos de uma percepção aguçada e sensível aos sinais.


A metapoesia também domina o cenário criado por Ana e seus recursos estéticos e metafóricos trabalham numa imagem material do poema, um objeto também tomado como os outros, o poema-coisa. E a tentativa sintética de Ana é de condensação da experiência totalizante do mundo nesta cápsula chamada poema. A linguagem aqui opera através do poema a experiência do mundo e sua síntese num espaço compactado, o poema que lhe enuncia.


A tematização sobre objetos na poesia vem de Rilke, Drummond, Francis Ponge, pois Drummond em Alguma Poesia coloca já a figuração das coisas, num tom familiar e prosaico, e que viraria uma grande influência e um dos marcos da poesia brasileira moderna e contemporânea (aqui evito a reverência excessiva ou o dogma, pois Drummond era amplo e diverso, também foi o poeta de Claro Enigma).


Mas, a experiência de Drummond neste sentido aberto pela Alguma Poesia se amplia com Lição de Coisas, em 1962, em meio a uma movimentação na poesia brasileira de tentativa de recuperação lírica e ruptura com o concreto e circunstancial, mundo de coisas prosaicas reafirmado e reforçado em Lição de Coisas. Tal poesia prosaica também ganhou portadores originais como Manuel Bandeira e o sui generis Manoel de Barros.


Ana Martins Marques se insere na poesia sobre as coisas com influência direta de Drummond e dialogando com Bandeira. Na estreia de Ana com Arquitetura de Interiores, esta exploração das coisas vai ao máximo, poemas curtos e com carga forte de condensação, na Arte das Armadilhas, seu segundo livro, esta tematização das coisas se repete e culmina com O Livro das Semelhanças em que o leitmotiv será o objeto livro, a poesia em seu estado mais referencial, tirando o universo da declamação.


A metapoesia, em O Livro das Semelhanças, joga com a semelhança e espelhamento entre os poemas e o objeto-livro, os poemas viram objetos também, a materialidade é um reflexo da poesia de Ana neste livro, e aqui temos um paralelo possível com Mallarmé que toma o poema como artefato. Os objetos na poesia de Ana também servem como delimitação de um espaço subjetivo, este contato do sujeito poético com seu poema-coisa é quase uma experiência de máxima condensação, em que a unidade ganha aqui a relação do poeta com o mundo, e colocando as coisas diante de sua subjetividade, e nesta tensão nasce o poema.


Ana Martins Marques tem a sua poesia possivelmente dividida em duas frentes, uma que cria imagens e realidades, poemas que se concentram na imagem de si, um meta-poema, poemas condensados e que podem ser denominados de circunstanciais. A segunda frente da poesia de Ana é a que abre a subjetividade, em que a memória tem papel importante, adentrando a linguagem de modo mais profundo que seus poemas objetivos, configurando poemas que manifestam pensamentos.


POEMAS:


VISITAS AO LUGAR-COMUM


SEM TÍTULO: O poema se fragmenta na sua visão, desde a saída, no que temos: “Quebrar o silêncio/e depois recolher/os pedaços”. A vista limitada, parcial, nebulosa, uma crise da percepção se instala, agônica: “Pagar para ver/e/receber/em troca/vistas parciais”. Decai então na palavra também barrada e limitada, no que temos: “Dobrar a língua/e ao desdobrá-la/deixar cair/uma a uma/palavras/não ditas”. E a perda da noção de tempo, a sensação de desorientação, no que segue: “Perder a hora/e encontrá-la depois/num intervalo/de teatro”. A presença do abismo se insinua, como um fundo, uma garganta, que chama à escuridão: “Dar à luz/e então sondar/num átimo/de abismo” (...) “a própria/escuridão”. A loucura, a desorientação em seu estado total, toma o poema, a poeta aqui perde a cabeça: “Perder a cabeça/e então buscá-la/nos últimos lugares/onde esteve”. E segue o périplo, de retomadas, circunvoluções e rupturas: “Tirar fotografias/e depois devolvê-las/àqueles de quem as tiramos” (...) “Cortar relações/e depois voltar-se/verificar se o que restou/suporta/remendo”. O tempo e sua espera, a angústia do tempo da espera e o amor profundo, mas que não se afunde, que sempre dê pé: “Esperar horas a fio/e então desvencilhar-se/das coisas tecidas na espera” (...) “Amar profundamente/mas testar/volta e meia/se ainda/dá pé”. O risco como a melhor forma de examinar o traçado, a poeta aqui arfante, no entanto, é agraciada, pois pode ver seu feito, seu traçado, seu rastro: “Correr riscos/e ao fim/arfante/da corrida/voltar-se/para avaliar/o traçado”. E aqui o poema finaliza com a imagem da queda, mas num viés de bom humor, numa sequência em que a poeta se junta a todos que caíram, no que temos : “Esperar junto àqueles/que caíram em si/que caíram na risada/que caíram no ridículo/que caíram do cavalo/que caíram das nuvens/que a noite/caia”. O poema então que parte do fragmento ao fim se quebra, e o discernimento que enfrenta os cacos, o poema se estilhaça: “Quebrar promessas/e ao recolher os cacos/discerni-los/entre aqueles/do silêncio/quebrado”.


O LIVRO DAS SEMELHANÇAS


SEM TÍTULO: O poema aqui começa numa operação de esquecimento e de destruição da memória: “Podemos atear fogo/à memória da casa/desaprender um idioma/palavra por palavra/podemos esquecer uma cidade”. A ideia de pertencimento aqui é invertida, ganhando contorno contra-intuitivo: “As casas pertencem aos vizinhos/os países, aos estrangeiros/os filhos são das mulheres/que não quiseram filhos/as viagens são daqueles/que nunca deixaram sua aldeia”. O poema flerta aqui com o conhecimento superficial e de gabinete, sem vivência, no que temos: “Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que/faz um livro/quando tomba/os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar/das páginas/os que veem o mundo como um grande volume ilustrado” (...) “os que conhecem as cidades apenas pelo nome” (...) “Pintores que pintam apenas títulos de quadros/Fotógrafos que só fotografam fotografias/atores com seus figurinos de palavras” (...) “viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades/enamorados de nomes de mulheres/pais de nomes de crianças”. E o mundo real, empírico, é sempre mais duro e difícil, do qual não se foge, e o poema lhe dá a face e a importância devida, no que temos: “É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo/É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento/Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome”. E do real a poeta indaga novamente o plano da linguagem, o que se pode dizer do que se é concreto, no que temos : “seria preciso então entender o beijo como um/elemento gramatical/acrescentar as palavras entre os movimentos básicos/da dança/Quanto do desejo mora/na palavra desejo?”.


SEM TÍTULO: O poema enuncia uma relação interessante, em que a poeta flerta com seu amante-interlocutor, e o poema começa bem lúdico, no que temos: “Estou no dia de hoje como num cavalo/você está nas suas roupas como/num navio/estamos na cidade como num teatro numa floresta/na água” (...) “a tarde de terça é uma feira de bairro/nos encontramos quase por descuido/à mesa do café com sua toalha xadrez/de frente para o cinema contínuo do mar”. A poeta então deslinda toda a sua admiração deste seu amante que ela vê como um tipo ideal inteligente, no que vem: “você desdobra a tarde como um guardanapo/lançado ao colo/você conhece os modos no que se refere às tardes/você sabe usar/os talheres da tarde”. O conhecimento deste amante é enunciado com orgulho pela poeta, e o poema fica bem interessante mesmo, no que vem: “você conhece muitas coisas você sabe falar/sobre as coisas como esses bichos que conhecem/desde sempre as rotas ancestrais/como os pássaros que trazem impressos no corpo/os mapas migratórios você conhece a língua do amor/que eu soletro tão mal”. A poeta então confia seu amor a este amante que conhece estes arcanos melhor do que ela, ao menos é o que ela supõe.


SEM TÍTULO: O poema enuncia as indagações sobre o tempo, mas aqui não se trata do tempo típico presente, mas os mais complexos e confusos, passado e futuro, no que segue: “O passado anda atrás de nós/como os detetives os cobradores os ladrões/o futuro anda na frente/como as crianças os guias de montanha/os maratonistas melhores/do que nós/salvo engano o futuro não se imprime/como o passado nas pedras nos móveis no rosto/das pessoas que conhecemos/o passado ao contrário dos gatos/não se limpa a si mesmo”. A impressão que temos do passado é impossível sobre o futuro, o passado não se muda, não se faz limpeza do passado, o futuro, um maratonista que anda na frente, não é identificável, é mais um anelo que se tem, um plano, na frente corre o cão, e o passado é a criação do mundo : “pense em como do lodo primeiro surgiu esta/poltrona este livro/este besouro este vulcão este despenhadeiro/à frente de nós à frente deles/corre o cão”.


A IMAGEM E A REALIDADE: O poema inverte Manuel Bandeira, o arranha-céu reflete na poça para baixo, o poema é uma experiência sensorial, no que temos: “Refletido na poça/do pátio/o arranha-céu cresce/para baixo/as pombas – quatro –/voam no céu seco/até que uma delas pousa/na poça/desfazendo a imagem/dos seus tantos andares/arranha-céu/agora tem metade”. O poema encerra o desmanche da imagem e o que lhe resta.


AMOR NÃO FEITO: O poema enuncia aqui de forma delicada o fenômeno comum do amor que não se consumou, nada mais natural e corrente na vida comum e mortal, no que temos: “No centro do que lembro ficou/o amor não feito:/o que não foi rói o que foi/como maresia”. E a indagação da poeta é universal, no que vem: “o que fazer do desejo/que não se gastou?/alegria não sentida amor não feito”. A indagação então fica refletida no que restou, como uma chave de ouro meio indesejada, no que temos: “como parece banal agora/o que o barrou/compromissos decência covardia/não foi nada disso que ficou/mas precioso aceso/e perfeito/restou o desejo do amor/não feito”.


POEMAS:


VISITAS AO LUGAR-COMUM


SEM TÍTULO


I


Quebrar o silêncio


e depois recolher


os pedaços


testar-lhes o corte


o brilho


cego


 


II


Pagar para ver


e receber


em troca


vistas parciais


uns cobres


de paisagem


 


III


Dobrar a língua


e ao desdobrá-la


deixar cair


uma a uma


palavras


não ditas


 


IV


Perder a hora


e encontrá-la depois


num intervalo


de teatro


nos cantos empoeirados


do domingo


entre um telefonema e outro


dentro do táxi


 


V


Dar à luz


e então sondar


num átimo


de abismo


- como um espeleólogo


um cosmólogo


um cenógrafo


um guarda-noturno –


a própria


escuridão


 


VI


Perder a cabeça


e então buscá-la


nos últimos lugares


onde esteve


dentro da touca


de banho


sobre o travesseiro


entre os joelhos


entre as mãos


na casa demolida


da infância


sobre suas coxas


mornas


ainda


 


VII


Tirar fotografias


e depois devolvê-las


àqueles de quem as tiramos


à mulher fora de foco


em seu vestido violeta


à casa de janelas verdes


às paisagens


tomadas emprestadas


à casca


de cada coisa


aos vários ângulos


da Torre Eiffel


ao cachorro morto


na praia


VIII


Cortar relações


e depois voltar-se


verificar se o que restou


suporta


remendo


demorar-se


sobre a cicatriz


do corte


IX


Esperar horas a fio


e então desvencilhar-se


das coisas tecidas na espera


dos ponteiros do relógio


cada um mais lento que o outro


dos pelo menos dez cigarros


das poltronas de mogno


uma delas


vazia


X


Amar


profundamente


mas testar


volta e meia


se ainda


dá pé


XI


Correr riscos


e ao fim


arfante


da corrida


voltar-se


para avaliar


o traçado


XII


Chegar em cima da hora


e espiar


de relance


como quem levanta o tapete


em casa alheia


o que ficou


por baixo


XIII


Esperar junto àqueles


que caíram em si


que caíram na risada


que caíram no ridículo


que caíram do cavalo


que caíram das nuvens


que a noite


caia


XIV


Quebrar promessas


e ao recolher os cacos


discerni-los


entre aqueles


do silêncio


quebrado


 


O LIVRO DAS SEMELHANÇAS


 


SEM TÍTULO


Podemos atear fogo


à memória da casa


desaprender um idioma


palavra por palavra


podemos esquecer uma cidade


suas ruas pontes armarinhos


armazéns guindastes teleféricos


e se ela tiver um rio


podemos esquecer o rio


mesmo contra a correnteza


mas não podemos proteger com o corpo


um outro corpo do envelhecimento


lançando-nos sobre a lembrança dele


 


As casas pertencem aos vizinhos


os países, aos estrangeiros


os filhos são das mulheres


que não quiseram filhos


as viagens são daqueles


que nunca deixaram sua aldeia


como as fotografias por direito pertencem


aos que não saíram na fotografia


- é dos solitários o amor


 


Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que


faz um livro


quando tomba


os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar


das páginas


os que veem o mundo como um grande volume ilustrado


no entanto sem legendas sem índices remissivos


sem notas explicativas


os que conhecem as cidades apenas pelo nome


e acham que cabem no nome muitas coisas


inclusive certas ruas vazias de madrugada


as casas prestes a serem demolidas


os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto


 


na cama quanto no pensamento


aqueles como nós para quem o desejo


não é prenúncio mas já a aventura


os que se reconhecem na tristeza


das piscinas vazias à beira-mar


 


Pintores que pintam apenas títulos de quadros


Fotógrafos que só fotografam fotografias


atores com seus figurinos de palavras


com sua maquiagem de palavras


num cenário de palavras


viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades


enamorados de nomes de mulheres


pais de nomes de crianças


até que seus próprios nomes morrem nas campas


 


É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo


É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento


Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome


É possível terminar uma frase com um beijo assim


Como é possível


encerrar subitamente uma dança com uma palavra


seria preciso então entender o beijo como um


elemento gramatical


acrescentar as palavras entre os movimentos básicos


da dança


Quanto do desejo mora


na palavra desejo?


 


SEM TÍTULO


Estou no dia de hoje como num cavalo


você está nas suas roupas como num navio


estamos na cidade como num teatro numa floresta


na água


 


a tarde de terça é uma feira de bairro


nos encontramos quase por descuido


à mesa do café com sua toalha xadrez


de frente para o cinema contínuo do mar


no vagão deste mês setembro sereia sinuosa


era quente o dia era o equívoco das estações


era a música pequena da memória


estou no dia de hoje como num casaco largo demais


estou no país desta tarde como as mangas


da sua camisa branca


você desdobra a tarde como um guardanapo


lançado ao colo


você conhece os modos no que se refere às tardes


você sabe usar


os talheres da tarde


estou desconfortável no meu nome estou


na antessala do amor estou na estação


da espera queria distrair a morte


você conhece muitas coisas você sabe falar


sobre as coisas como esses bichos que conhecem


desde sempre as rotas ancestrais


como os pássaros que trazem impressos no corpo


os mapas migratórios você conhece a língua do amor


que eu soletro tão mal


 


SEM TÍTULO


O passado anda atrás de nós


como os detetives os cobradores os ladrões


o futuro anda na frente


como as crianças os guias de montanha


os maratonistas melhores


do que nós


salvo engano o futuro não se imprime


como o passado nas pedras nos móveis no rosto


das pessoas que conhecemos


o passado ao contrário dos gatos


não se limpa a si mesmo


aos cães domesticados se ensina


a andar sempre atrás do dono


mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem


pense em como do lodo primeiro surgiu esta


poltrona este livro


este besouro este vulcão este despenhadeiro


à frente de nós à frente deles


corre o cão


 


A IMAGEM E A REALIDADE


                                   Refletido de um poema de Manuel Bandeira


Refletido na poça


do pátio


o arranha-céu cresce


para baixo


as pombas – quatro –


voam no céu seco


até que uma delas pousa


na poça


desfazendo a imagem


 


dos seus tantos andares


arranha-céu


agora tem metade


 


AMOR NÃO FEITO


No centro do que lembro ficou


o amor não feito :


o que não foi rói o que foi


como maresia


 


casa onde não morei país invisitado


praia inacessível avistada do alto


o que fazer do desejo


que não se gastou?


 


alegria não sentida amor não feito


prazer adiado sine die


palavra recolhida como um cão


vadio gesto interrompido beijo a seco


 


como parece banal agora


o que o barrou


compromissos decência covardia


não foi nada disso que ficou


 


mas precioso aceso


e perfeito


restou o desejo do amor


não feito







Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

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