Sexta, 26 Abril 2024

'Precisamos de uma relação democrática entre o cinema e o público'

'Precisamos de uma relação democrática entre o cinema e o público'

Claudino de Jesus se prepara para deixar a presidência da Federação Internacional de Cineclubes (FICC), que reúne entidades de mais de 40 países.  "Desta vez já articulei tudo", diz, lembrando que quando foi eleito e reeleito para o cargo, foi o último a saber das articulações em torno do seu nome.


Já perdeu a conta do número de vezes que presidiu o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC), desde os tempos da ditadura até a reativação mais recente, no anos 2000. Mas sua paixão pelo cinema começa lá atrás, na cidade de Barra de São Francisco, noroeste do Espírito Santo. Na pequena cidade de interior, o cinema era a principal diversão do menino que não gostava de jogar bola, mas queria ver os filmes que a censura não permitia para crianças.


Mais pra frente, foi estudar em Colatina e Vitória, locais onde rapidamente se engajou no movimento estudantil e passou a militar clandestinamente no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entrou na faculdade de Medicina na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Certa vez, no Restaurante Universitário, recebeu debaixo da mesa um bilhetinho, que passava de mão em mão, de forma escondida, avisando que haveria uma exibição de Teorema, de Paolo Pasolini, na universidade.


Dessa forma quase secreta, encontrou o cineclubismo, que tornou ainda mais intensa sua relação com o cinema. A partir dali surgiria o Cineclube Universitário beneficiado pelo espírito democrático de Manoel Ceciliano Abel de Almeida, reitor da Ufes, que buscava manter um ambiente autônomo e livre dentro da universidade em plena ditadura. 


O Cineclube Universitário seria o ponto de partida para organização do movimento cineclubista capixaba, o que ajudou a formar e organizar outros cineclubes capixabas, gerando uma tradição do Estado dentro do movimento nacional. Claudino acabou sendo muitas vezes um líder conciliador, que conseguia juntar numa mesma gestão dirigentes com divergências significativas, mas que conseguiam trabalhar juntos.


Na próxima semana, ele embarca para Portugal para a Assembleia Geral da FICC, onde pretende "passar o bastão" para um novo presidente. Antes disso, conversamos com Claudino, o médico, servidor público, roteirista, documentarista, produtor cultural e... cineclubista.




Foto: Facebook


Como você define cineclube? O que é preciso para considerar um projeto como cineclube?


Acho que cineclube é uma expressão de um determinado grupo social que vê no cinema, no audiovisual, a forma de se organizar, concretizar seus sonhos, suas lutas e de avançar. Traz aí junto, evidentemente, uma carga grande do interesse pelo cinema. Agora, o cineclube se faz quando ele consegue plantar raiz numa determinada comunidade. 



Precisa de algumas características que eu chamo de cláusulas pétreas, que não abro mão. Precisa não ter fins de lucro, ninguém pode se apropriar de um tostão, qualquer dinheiro que entre tem que ser reinvestido na própria atividade.


Ser intrinsecamente democrático, não ter dono. Se dá quando você começa a discutir a programação com seu público. O público começa a intervir na programação, na organização, propor coisas, aí você atingiu a maturidade democrática do cineclube. E mais do que isso, se dá quando seu cineclube vira representante das lutas desse povo, para além do audiovisual.


Historicamente, o Espírito Santo tem uma tradição de atuação marcante dentro do movimento cineclubista nacional. Por quê?


Tem. Sempre nossas delegações foram das maiores, mais participativas nas jornadas nacionais, sempre tivemos mais de um representante no Conselho Nacional de Cineclubes, um reconhecimento nacional muito grande. 


Isso porque, lá atrás, a gente não ficou fazendo cineclube, a gente organizou o movimento no Estado. O Cineclube Universitário organizou tantos cineclubes, sediou a Federação Capixaba e a Federação trabalhou com as pessoas, na formação de lideranças cineclubistas no Estado. E essas lideranças foram replicando isso, de forma que você vai sempre encontrar núcleos que vão falar de pessoas daqui e nos procurar. A gente não fez cineclube, a gente fez cineclubismo mesmo, movimento, com formação de público e de liderança, que acho que é o que enfraquece a articulação hoje, há muito pouca formação cineclubista. 


E o que é o movimento cineclubista? Por que ele vai além do cineclube?


Porque movimento pressupõe articulação em rede com objetivos comuns. Então se dá quando cineclubes se articulam e buscam uma organização para atingir determinado fim, que em última análise também é formar e organizar o público. A gente precisa se organizar e se articular enquanto movimento para trabalhar no sentido de que o público se organize para que o público seja o elemento central do audiovisual.


Há uma diferença entre cineclube e cinema na relação. A relação do cinema é fascista. Um cara me apresenta aquilo, eu pago pra ver, estou comprando um produto de mercado. Quando recebo o produto eu não tenho direito de devolver, eu tenho que engolir aquilo, mesmo se eu ficar revoltado com o que eu vi. No cineclube não, você não paga pra ver, contribui se quiser, você discute o filme, propõe acabar com esse tipo de filme, tem uma relação democrática com o público. O comando do cineclube não é do dirigente cineclubista, é do público. E do cinema comercial de quem? É do comércio. Essa é uma diferença brutal.


E como o cineclube contribui para democratizar o audiovisual?


Ao dizer que cineclube tem que trabalhar para formar e organizar o público para o audiovisual, falo de filmes das diferente nacionalidades, sem a censura de Hollywood, aquele bairrozinho de Los Angeles. Um bairro vai mandar no mundo inteiro? O império blockbuster. 


Eu assisto tudo, não quero vetar ninguém de ver nada, não. Eu quero que todo mundo veja tudo e tenha o discernimento, tenha formação, nisso o cineclube tem a contribuir. Até o momento em que ele se organize, por exemplo, para se sair um filme fascista o público bloquear. Isso acontece na Europa. Pararam de comprar no supermercado produtos do Brasil por conta da quantidade de agrotóxico que o governo liberou ou em boicote pela queimada da Amazônia.


Esse é um público que se empoderou. É deixar de ser um espectador passivo que recebe na tela o que vier sem poder fazer nada. Num cineclube você pode mandar até parar no meio da sessão. Você vai fazer isso no cinema? A polícia entra e te arrasta.


É preciso romper com a barreira do acesso. Defender os direitos do público. A Carta dos Direitos do Público foi promulgada em 1968 na extinta Tchecoeslováquia, e está valendo até hoje. O público tem que ter acesso universal a todas formas de cultura, no nosso caso, a todos audiovisuais internacionais, não só o brasileiro. Todos.


E como você encara a questão dos direitos autorais, sobre os quais por vezes os cineclubes são questionados por suas exibições?


Eu respondo como eu disse recentemente: "foda-se! Direito autoral é uma coisa, direito patrimonial é outra. Eu não estou ferindo direito patrimonial de ninguém, não estou ganhando nem um centavo com sua obra. Pelo contrário, eu pago para exibir sua obra, formar público para depois assistirem você no cinema, idiota". Assim que eu respondi quando vieram pra cima de mim.


Tenho todo respeito a seu direito autoral. Só exibo filme na íntegra, não corto sequer um letreiro no final, busco passar seu filme com qualidade audiovisual, levo público a compreender o filme, às vezes, em caso de filmes mais sofisticados, que seriam vaiado no cinema, mas que amanhã ou depois esse público vai recomendar ver no cinema


É importante ressaltar que os cineastas brasileiros nunca deixaram de ser compreensivos com a qualidade e seriedade de nosso trabalho. Sempre foram até generosos. Já fizeram cópia com dinheiro do próprio bolso e mandaram para a gente.


Quais os benefícios que o cineclube e o cineclubismo oferecem?


Cineclubes foram fundamentais para a derrubada da ditadura, para a luta pela Diretas, para o lixo nuclear não ficar no Espírito Santo, entendeu? Então, na morte do estudante Édson Luiz os cineclubes estavam lá presentes, nas greves do ABC os cineclubes estavam lá presentes, mobilizando os trabalhadores.


Para cultura, a importância é que muitos cineastas começam ali, como Glauber Rocha e Kléber Mendonça Filho, diretor de Bacurau. Eu aprendi a fazer filme no cineclube. É uma grande escola. Essa é uma característica que acho que os cineclubes estão perdendo. O hábito de estudar e debater estética, construção e narrativa cinematográfica.


Tem que ter essa preocupação, senão perde a característica. Vira um movimento social como qualquer outro. Ao invés de passar um filme, posso trazer uma peça de teatro para juntar gente para fazer uma greve. A gente fez debaixo da ditadura era legítimo fazer isso naquela época. Mesmo assim a gente discutia cinema, dali saíam grandes cineastas, a gente fazia tudo.


Hoje acho que essa parte da questão da qualidade técnica e da discussão da narrativa e da estética do cinema ficou de lado, precisa retomar.


Como conjuntura política influencia no movimento cineclubista?


Essa coisa xenófoba, do separatismo, anti-União Europeia, contra o globalismo, a Terra é plana, é um perigo pré-iluminista. Em todo momento em que a ameaça aos princípios da  igualdade, fraternidade, legitimidade democrática, a cultura é, sem dúvidas, junto com a educação, um elemento vital para superação disso.


O papel e a responsabilidade do cineclubismo crescem nessa hora, se ampliam estrondosamente. Espero que responda como sempre respondeu ao longo do processo histórico. Que se amplie na defesa intransigente dos direitos da pessoa humana, dos direitos do público, da democracia. Não estou dizendo pra fazer do jeito que a gente fez. Que apresentem novos caminhos, vou adorar fazer diferente.


O engajamento social sempre foi uma marca presente nos cineclubes, trazendo temáticas que apontam para transformação social?


Isso não é só daqui. Quanto menos espaço houver para debater certos temas, mais esse temas vão para dentro dos cineclubes. Exatamente por ser um espaço democrático. É natural que movimentos que não têm muito espaço ou que se sentem ameaçados busquem os espaços que não os refutem, ambientes democráticos que dialogue com todas temáticas da sociedade.

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