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Quilombolas fazem balanço positivo dos dez anos de Retomadas no Sapê do Norte

“Esse projeto que a gente constrói nas Retomadas é para a vida. E elas já estão matando a fome de pessoas, principalmente dentro de Conceição da Barra. O Brasil atravessa uma crise de desemprego, então as Retomadas vêm como a solução”. A fala, segura e otimista, é de Antônio Sapezeiro, da comunidade de Córrego do Chiado, uma das principais lideranças do movimento de Retomadas do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, localizado entre os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, norte do Estado.

Sapezeiro faz questão de manter o discurso positivo, mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas pelas comunidades quilombolas do Sapê, porque, de fato, a despeito do descaso do Estado, seja em nível municipal, estadual ou federal, a realidade é que as comunidades estão cada vez ais organizadas e unidas, voltadas à produção agroecológica de alimentos, à recuperação das matas ciliares e nascentes, e ao fortalecimento da sua identidade cultural.

A energia contagiante que emana do território tradicional, por meio dos movimentos de Retomas, tem atraído muitos quilombolas, desde os pertencentes à geração que viu os corentões da Aracruz Celulose colocaram abaixo a Mata Atlântica, em total desrespeito ao Código Florestal, já vigente na época, quanto os mais jovens, que, bem informados sobre sua história e seus direitos como povos tradicionais, decidiram tomar de volta suas terras e construir um presente e um futuro mais próspero.

Oásis

Atualmente, Conceição da Barra já conta com uma dúzia de áreas de Retomas em funcionamento, pequenos oásis em meio ao deserto verde implantado primeiramente pela Aracruz Celulose (Fibria), na década de 1970, e, depois, ampliado pela Suzano, BahiaSul e Disa, esta última, substituindo seus canaviais por monoculturas de eucaliptos.

“A água a gente percebe que passa a ter uma reação melhor, o ambiente já vai mudando, a paisagem, já vai mudando o clima, porque a chuva vem. A gente ficou três anos sem chuva, mas quando a chuva volta, se não tiver a mata ciliar pra segurar a água, 300 mm de chuva ainda não é suficiente. E quando a gente começa a trabalhar agricultura campesina, automaticamente a mata já vem vindo, historicamente é assim”, descreve Antonio, entusiasmado com o rebrotamento da água no território, arrasado por 40 anos de monocultivos.

O depoimento de Sapezeiro aconteceu poucos dias após a realização do “III Encontro das Retomadas Quilombolas – Retrospectiva dos 10 anos”, ocorrido no último dia nove de dezembro, no Centro de Referência em Assistência Social (Cras) Quilombola Negro Rugério, em Santana, Conceição da Barra, reunindo representantes das comunidades e instituições que apoiam o movimento.

No Encontro, foi construído um histórico de lutas e resistências das comunidades quilombolas contra as violações de seus direitos, e levantados oito encaminhamentos de ações, referentes à formação política das lideranças, assistência técnica agrícola, comunicação e segurança entre as comunidades, e criação de uma feira agroecológica para escoamento dos produtos e de uma comissão das Retomadas, com agenda de reuniões e eventos. 

Os tópicos listadas envolvem ainda temáticas fundamentais, como a contaminação da água pelos venenos aplicados nas plantações de eucaliptos, e a falta de saneamento básico, resultado da ausência do Estado na região.

Contexto internacional

Essa omissão já foi inclusive denunciada na Organização dos Estados Americanos (OEA). Atualmente, os militantes quilombolas preparam um estudo, para levantar as principais demandas das comunidades, e convocar o Ministério Público Federal (MPF) para exigir soluções. “A gente não quer ir no Ministério Público Federal pra levar problema. Vamos levar uma pesquisa, o que precisa para a nossa gente”, conta Sapezeiro.

As barbaridades que ainda acontecem no Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte não são uma anomalia exclusivamente capixaba. “Latifundização e estrangeirização da terra, concentração de poder, expulsão da população rural, perda líquida de empregos em nível local, esgotamento de solos e recursos hídricos, perda da biodiversidade”, acontecem em todos os países – todos no hemisfério Sul – que são violentados por milhões de hectares de monocultivos de eucalipto. A informação é do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, na sigla em inglês), na edição 109 de seu Boletim, destacando a África do Sul, o Brasil, o Chile e a Indonésia.

No cenário brasileiro, infelizmente, o pequeno Espírito Santo, um dos menores unidades da federação, sedia a maior produtora mundial de celulose e parte significativa de seus monótonos e letais campos de concentração de eucaliptos.

A explosão desértica teve início “no período mais drástico da ditadura miliar, época em que as vozes das comunidades negras remanescentes dos quilombolas não tinham eco”, conta o advogado ambientalista Sebastião Ribeiro, na edição nº 4 da publicação “Territórios Negros – Informativo de apoio às Comunidades Negras Rurais do Rio de Janeiro e Espírito Santo – Publicação do Koinonia”, em 2002.

EIA-Rima pronto em menos de um mês

Enfocando as irregularidades presentes no processo de licenciamento da Fábrica C da Aracruz Celulose, o advogado afirma que, apesar das antigas cenas inacreditáveis dos correntões da empresa derrubando a exuberante Floresta Atlântica de Tabuleiro, à revelia do recém aprovado Código Florestal, os ataques atuais à legislação ambiental, consideradas a conjuntura política do século XXI, são tão grotescas quanto.

Citando apenas três aspectos do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) aprovado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama) na época, Sebastião chama atenção para o mesmo ter sido feito em apenas 28 dias, um prazo sem qualquer razoabilidade para um trabalho dessa grandeza e complexidade, e conter, entre suas condicionantes, dois itens que são verdadeiros presentes para a empresa requerente.

“A primeira condicionante obriga a Aracruz Celulose S/A a ‘implantar um Programa em parceria com os produtores rurais para plantio de até 30 mil hectares de eucaliptos’, o Fomento Florestal II. A segunda, nem condicionante é”, destaca o advogado, transcrevendo a inacreditável redação: “para fins de esclarecimentos fica deliberado que não existe qualquer tipo de proibição no Espírito Santo para o plantio de eucalipto e compra de terras pela Aracruz Celulose S/A, dirimindo assim, quaisquer dúvidas decorrentes da interpretação da condicionante 15, imposta pela licença ambiental da fábrica B em 1988, desde que, seguidos os critérios ambientais”.

“Sobre as ilegalidades desses processos”, continua, “o Dr. José Claudio Pimenta, coordenador das Curadorias de Meio Ambiente do Ministério Público se manifestou com o seguinte parecer: ‘Assim agindo o Órgão ambiental passa a exercer uma atividade de promoção industrial, tal como uma agência de desenvolvimentos’. ‘Nessa condição, o Estado passa da condição de regulador, a de promovedor e parceiro de uma atividade impactante’.

Grilagem

Na mesma publicação do Koinonia, Mariza Rios e Rafael Agrello recuperam alguns resultados da CPI sobre a grilagem de terras da Aracruz Celulose, iniciada pela Assembleia Legislativa em 2001. Entre eles, o apontamento de “fortes indícios de irregularidades, referente à legalização das terras” no Território Quilombola do Sapê do Norte. “Muitos dos requerentes das terras devolutas eram funcionários de empresa, que a pedido, desta, assinavam requerimentos, sem mesmo conhecer as terras que pleiteavam”, contam os autores do artigo.

Algumas páginas antes, no mesmo Informativo, a educadora Daniela Meireles, da Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), oferece mais detalhes sobre a estratégia de grilagem de terras nos quilombos do norte do Espírito Santo pela Aracruz Celulose (Fibria).

“Uma liderança local cooptada, o Pelé, fazia a ponte até os negros, enquanto as resistências eventualmente surgidas eram coibidas com a presença do “tenente Merçon”. A oferta de compra era feita por família e os acordos variavam conforme o grau de resistência ou situação da terra. O comprador não era a própria empresa, mas alguém que prestava serviço para ela e daria o nome para registrar a terra. Em geral, o valor estipulado para a compra era baixíssimo, simbólico diante a cotação do mercado e principalmente diante o significado da terra para aquela população”, relata. “Praticamente todas as famílias com registro de terra tiveram propostas de venda durante a década de 70. Outros, desprovidos de documentos, deixaram a terra pelo uso da força”, complementa.

Atualmente, segundo a publicação “Trajetórias do Sapê do Norte”, da Comissão Quilombola do Sapê do Norte, lançada em 2011, o Território tem cerca de 30 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Das 12 mil famílias que habitavam a região até a chegada dos correntões da Aracruz Celulose, pouco mais de mil resistiram. Em área, a redução foi de 250 mil a 300 mil hectares para os atuais 10 mil hevtares.

No Brasil, enumera a publicação, “mais de 3500 comunidades quilombolas já foram identificadas no país, mas pouco mais de 1.000 foram reconhecidas. Dessas apenas 185 conseguiram sua titulação, depois de um longo período de mobilização e pressão popular”.

Luta honrada

No Sapê capixaba, um dos melhores exemplos dessa “mobilização e pressão popular” está nas Retomadas. Focadas nas terras devolutas do Estado, usurpadas dos povos quilombolas, as Retomas estão trazendo de volta a dignidade e a perspectiva de futuro para essas comunidades.

“Estamos lidando com a nossa gente, a nossa gente tá adoentada, as pessoas saíram nos anos 1960, foram expulsos da terra, foram pras periferias, foram pras vilas, e essas pessoas estão voltando agora, e agora a gente começa a fazer um trabalho de formação”, exalta Antonio Sapezeiro.

“Vamos defender essa causa, que é uma luta honrada que deve ser levada adiante, deve ter respeito sim com os companheiros que estão vivendo dentro dessas áreas, é na realidade um título real de quilombo”, convoca.

O convite de Sapezeiro faz coro com um entendimento surgido entre os jovens participantes do Projeto Escola Popular Quilombola. Registrado em uma publicação da Fase em 2012, o questionamento da juventude sobre “o que é ser um quilombola no Sapê do Norte no século XXI? Como levar adiante essa história, atualizar essa ancestralidade?” é respondido com um sonoro “Não é só uma referência ao passado, mas também um projeto de futuro!”. 

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