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Temos que ter um direito de resposta’, diz indígena sobre Bolsonaro

Foto: Arlete Schubert

Edson Kayapó tem uma história um tanto interessante. Nascido no estado do Amapá, pertencente à etnia Kayapó, foi educado num internato católico extremamente rigorosos no Pará, onde sofria castigos físicos para aprender a língua portuguesa e as tradições cristãs e brasileiras. Chegou a ser missionário no sul de Minas Gerais e na Zona da Mata Mineira, até que foi estudar história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Na universidade, em pouco tempo se desvinculou dos dogmas do cristianismo, se engajou no movimento estudantil, se tornou anarquista e ateu, e aprendeu sobre política. Mas de volta ao território de onde veio, com o povo Kayapó, teve que se reinventar outras vez.

“Diante das experiências que eu narrava, urbanas do Sudeste, os próprios indígenas questionavam minha indianidade. Os questionamentos que eram incômodos deles, passaram a ser meus. Daí percebi que a escola tinha me desensinado, que serviu para desaprender em relação às minhas tradições”.

Assim, foi buscar o conhecimento nos pajés e lideranças espirituais. Depois, voltou à academia, mais maduro, e fez mestrado e doutorado, que ajudaram a fortalecer seu pertencimento.

Atualmente, é professor de História Indígena na Licenciatura Intercultural Indígena no Instituto Federal da Bahia e também do Programa de Mestrado em Ensino e Relações Étno-Raciais na Universidade Federal do Sul da Bahia, em Porto Seguro. Ele está em Vitória participando do III Copene Sudeste, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Conversamos sobre educação, literatura indígena e, claro, os desafios políticos diante da atual conjuntura.

– Como enxerga os desafios para construir uma educação para as comunidades indígenas e também uma educação para o restante do país que considere esses povos ?

São duas frentes que têm algumas diferenças. É fundamental que desfaçamos essa colonialidade, é necessário esse movimento de decolonizar, porque historicamente para nossos povos a educação entrou como terra estrangeira em nossos territórios, querendo se impor como força majoritária e dizendo que nossas tradições originárias eram atrasadas.

Historicamente, projetos de educação trazidos pelos colonizadores e pelo Estado brasileiro foram sempre muito perversos, desmontaram as tradições, anularam línguas, fizeram que línguas fossem extintas, foram muito danosos. Esses que vinham educar diziam que povos indígenas eram incrédulos, infiéis, preguiçosos, mentirosos, traiçoeiros, bárbaros. Foi implantada então uma política de civilização para povos indígenas, só que foi extremamente violenta. 

Hoje dizemos que é necessário outro diálogo no campo educacional. Uma educação que valorize nossas línguas, tradições, ancestralidades, espiritualidades, saberes que estão nos mestres, parteiras, curandeiras, benzedeiras, pajés. São conhecimentos fundamentais que devem estar na escola em diálogo com a ciência, porque nós não estamos dizendo que a ciência acadêmica não tenha validade, estamos falando da necessidade da ciência dialogar em pé de igualdade com nossos saberes e a partir desse diálogo tentarmos construir outros saberes que sejam úteis para nós e para a sociedade brasileira.

Também é muito importante que se pense a questão indígena para as escolas não-indígenas. Porque nas escolas não-indígenas o que tem acontecido é ou o silenciamento em relação aos povos indígenas ou o ensino de uma história indígena de uma forma absolutamente equivocada, como quando se tenta generalizar, dizendo por exemplo que todos são índios e que todos falam tupi e adoram a Tupã. Isso é um equívoco que apaga nossas diversidades. Cada povo tem sua língua, suas tradições, sua história de origem. É necessário que a escola valorize essa diversidade, a ensine para os estudantes e coloque em seus currículos essas questões, que a diversidade é a realidade dos povos indígenas e não a homogeneidade como tem sido colocado. É um exercício que não é fácil, mas no qual é necessário que indígenas assumam papéis importantes dentro desse processo. Nas escolas indígenas os professores têm que ser indígenas e nas escolas não-indígenas tem que ter indígenas para ajudar a fazer esse diálogo.

– Em uma de suas participações no Copene Sudeste você falou sobre literatura indígena. Como ela vem se desenvolvendo?

O tema da literatura indígena é outro desafio, que começa dentro da academia porque essa academia rejeita o termo literatura indígena porque a literatura aceita é a literatura canônica, escrita pelos grandes pensadores e grandes intelectuais. Além dessa dificuldade, tem a dificuldade de que povos indígenas são de tradição essencialmente oral, a escrita é um conhecimento muito recente para nós, pensamos literatura para além da escrita.

A literatura compreende expressões diversas da espiritualidade, das danças, dos cantos, do toque do maracá, das nossas histórias relatadas oralmente, de resistência, de luta, de baixas que nós tivemos historicamente. Então para nós isso tudo compõe a literatura e essa literatura indígena é fundamental para que a gente desmistifique esses equívocos de que índio é tudo igual, desmistifique essa coisa da homogeneidade, tanto nas escolas indígenas como nas não-indígenas. 

Então a literatura é um instrumento para expor outras histórias para além das histórias equivocadas que existem e estão colocadas nos currículos das escolas brasileiras. Outras histórias que são nossas histórias protagonizadas por nós mesmos, que é um exercício fundamental também pra que haja diálogo tranquilo e que haja uma pacificação da sociedade brasileira em relação aos povos indígenas.

– O que você recomenda para quem quer conhecer essa literatura indígena?

Para conhecer história e literatura indígena e toda temática é necessário que as pessoas se debrucem nessa leitura que muitos escritores indígenas estão produzindo. Para citar alguns mencionaria o Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Yaguaré Yamã, Eliane Potiguara, Aurita Tabajara, Aline Kayapó, Pietra Dolomita, Olívio Djekupe, Djerá Guarani, para pensar alguns nomes no campo da produção escrita. Mas como literatura não é só escrita, diria que é necessário que as pessoas se aproximem das comunidades, lideranças e pessoas indígenas ou as convidem pra fazer falas nos espaços e nos debates ou, de preferência, se desloquem até as comunidades. Sempre tem uma comunidade indígena mais próxima dos espaços urbanos. Aqui em Vitória, por exemplo, tem várias aldeias dos povos Tupinikim e Guarani e é interessante que se desloquem até lá para vivenciar um pouco esse cotidiano dos povos indígenas.

– Como analisa a questão indígena no contexto atual?

Em relação aos acontecimentos da conjuntura nacional nesse momento, vemos um quadro muito triste. Há uma crise econômica, uma crise que na verdade é mundial, de valores morais, socioambiental, aquecimento global, crise ética, muitos problemas.

E para os povos indígenas isso na verdade é continuidade de uma crise que é do projeto cartesiano, do projeto de desenvolvimento que a humanidade escolheu para seguir. Nós temos sofrido essa violência que faz parte desse projeto desde a invasão portuguesa por aqui. Mas esse momento, sem dúvidas, é muito grave, porque o governo Bolsonaro é um governo que declarou guerra aos povos indígenas. Particularmente no discurso que o presidente fez na ONU, foi uma declaração de guerra aos povos indígenas quando diz que focos de incêndio na Amazônia são responsabilidade de povos indígenas e declarou guerra aberta ao cacique Raoni, que é uma liderança reconhecida por todos povos indígenas, é um cacique Kayapó mas que tem respeito de todos os povos. É uma situação muito grave. O presidente Bolsonaro, entre muitas coisas, falou muito contra o socialismo, falou da família no sentido ultraconservador disso, condenando homossexualidade. 

Eu diria que temos que ter um direito de resposta. Ainda que entre nós, que façamos esse direito de resposta repercutir. E entre os direitos de resposta é importante dizer que na Amazônia os espaços preservados de maneira muito evidente são os espaços onde estão os povos indígenas.Os espaços onde estão mineradoras, a soja, o agronegócio, as madeireiras são espaços absolutamente destruídos e o próprio Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, já demonstrou isso.

Então é necessário que a sociedade brasileira e capixaba saiba que povos indígenas têm um compromisso ancestral, um compromisso espiritual com a preservação da floresta, não só na Amazônia, mas onde tem povo indígena é garantido que tem espaço de preservação do meio ambiente e de relações sociais respeitáveis entre pessoas e das pessoas e meios onde elas estão.

– E como vê os indígenas que tem acompanhado e apoiado o presidente Bolsonaro?

É preciso dizer que nós povos indígenas definitivamente não apoiamos esse projeto de governo que está instituído. O atual governo tem feito um esforço muito grande de rachar o movimento indígena quando se alinha ou corrompe algumas pouquíssimas lideranças indígenas para falar a voz do governo, que não tem representatividade no movimento indígena. Várias organizações já declararam que não apoiam o governo Bolsonaro. Se existem algumas pessoas indígenas que dizem apoiar o que Bolsonaro está dizendo, são pessoas que definitivamente não têm legitimidade nem autoridade para falar por nós. É preciso deixar isso claro porque o discurso na ONU foi um discurso que confundiu muita gente.

– O que os povos indígenas podem fazer para reagir nessa conjuntura?

Estamos diante de uma situação extremamente complicada não só para indígena mas para todos brasileiros. A agressão se generaliza com o corte de direitos que estão na Constituição. Então é necessário que haja unidade de movimentos e os povos indígenas estão buscando fortalecimento, fazendo diálogos em encontros, congressos, acampamentos. Mas é necessário que haja proximidade como o movimento negro, de mulheres, LGBTQ, trabalhadores, estudantes, é necessário que esses movimentos se aproximem e tentem fazer uma grande frente em defesa da vida, da Amazônia, dos direitos de maneira geral e particularmente pela defesa dos povos originários, afinal, os povos indígenas não são estrangeiros nem invasores como o próprio governo diz. 

Então o movimento indígena está buscando se fortalecer. Fizemos o Acampamento Terra Livre em Brasília e o governo decretou que esse acampamento não iria acontecer e convocou a polícia para não acontecer. Mas estrategicamente nós conseguimos fazer acontecer na Esplanada dos Ministérios. Fizemos toda uma estratégia de luta, um cronograma de ações.

Ele tentou transferir a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério do Desenvolvimento Agrário e nós conseguimos barrar com muita luta. O governo federal tentou abolir o programa de bolsa permanência para estudantes indígenas e conseguimos reverter. Tentou colocar em prática o tal do marco temporal, considerando a validade da demarcação de terras dos povos indígenas somente para antes da Constituição e conseguimos que fosse arquivado. A municipalização da saúde indígena também conseguimos reverter, entre outras lutas que conseguimos vencer recentemente a partir de uma organização do movimento indígena.

Estamos atentos aos movimentos desse governo e continuaremos resistindo porque nossa resistência não começou agora. São 519 anos e estamos calejados disso.

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