Quinta, 28 Março 2024

Uma xamã no exílio

Uma xamã no exílio

Fotos: Lara Sartório



Kuña Jekoaku fala com aparente eloquência, com gestos tranquilos e palavras firmes. Parece ter muito o que dizer, mas não entendo quase nenhuma palavra. A txamoi Guarani só fala a língua nativa de seu povo, intercalando com espanhol algumas poucas palavras que expressam uma modernidade não traduzida pela língua guarani.



Txamoi é como os Guarani chamam os sábios mais velhos, conhecedores da cultura e da espiritualidade de seu povo, como uma espécie pajé ou xamã, na linguagem ocidental. Desde o final do ano passado, Kuña chegou com o marido, uma das filhas e três netas até a aldeia Piraquê-Açu em Aracruz, trazidos pelos “parentes” da mesma etnia, fugindo de um contexto de violência agrária dos fazendeiros e intolerância religiosa dentro de seu próprio povo no Mato Grosso do Sul.


Karaí Peru, o cacique de Piraquê-Açu, também conhecido como Pedro, conheceu a txamoi buscando ajuda para seu filho doente em Aracruz, que médico nem remédio conseguiam curar. Conta que estava triste e chorava muito, e quando soube de uma curandeira poderosa vinda do Paraguai fez uma peregrinação até a fronteira com a família, sendo recebidos e tratados com cantos, benzimentos e medicinas tradicionais.


Ficou o convite para uma visita em Aracruz, mas o tempo passou. As conversas seguiram à distância, por meio cantos diários que praticam e dos sonhos. No início de dezembro passado, Karaí sentiu que algo sucedia e tinha que ir até a casa de Kuña, uma tarefa que costuma ser complicada mas que nesse momento aconteceu muito facilmente. Em poucos dias tinha conseguido uma van na qual partiram dia 18 de dezembro para uma longa viagem.


Do lado de lá, a família já esperava ajuda. Embarcaram na manhã seguinte, levando apenas algumas mudas de roupa e algo de medicina tradicional, abandonando plantios, animais e outros bens na aldeia Ywy Katu, localizada no município de Japorã, no Mato Grosso do Sul, muito perto da fronteira com o Paraguai.


Em busca da Terra Sem Males


O território guarani inclui Brasil, Paraguai, Bolívia, Argentina, Uruguai, vai para além das fronteiras dos estados nacionais, surgidos bem depois de que eles já habitavam o continente. O extremo norte da povoação guarani é Aracruz, onde a etnia se estabeleceu na década de 1960, pondo fim a uma longa jornada partindo daquela fronteira binacional de onde veio Kuña até o litoral, fundando aldeias também na costa do Rio de Janeiro e de São Paulo.


Ainda é muito viva na memória dos Guarani de Aracruz a figura de Tatantxin Yawá Reté, a líder espiritual que viveu mais de 100 anos e conduziu essa longa caminhada até o Espírito Santo, na busca da Terra Sem Males (Ywy Marãe’y), um território não só físico mas também espiritual, onde possam desenvolver o Ñande Reko, modo de vida guarani, ligado à terra e espiritualidade. Mal imaginavam os Guarani que chegariam a Aracruz junto com o plantio de eucalipto em monocultivo e larga escala, que resulta num impacto socioambiental muito preocupante.


Apesar de tudo, o território dos “parentes” de Aracruz parece um paraíso perto da realidade do Mato Grosso do Sul. Há grandes rios, com o Piraquê-Açu, que faz fundo à nossa conversa na Aldeia Temática, espaço de etnoturismo dos Guarani. Em Ywy Katu, área retomada em 2013 como extensão da aldeia Porto Lindo,  são necessários caminhões pipa para abastecer as comunidades, não há energia elétrica, mas a família sobrevive por meio do plantio de variedades como mandioca, batata, abóbora e cana.



A família se une várias vezes ao dia para as orações em forma de canto


Na região vivem mais de 4 mil Guaranis, em terra reconhecida como indígena mas ainda não demarcada dentro de uma grande fazenda, na qual os povos originários ocupam apenas 10% da área total, que é contestada por fazendeiros utilizando instrumentos jurídicos e também ação de jagunços. A luta se arrasta por décadas sem resultado de efetiva demarcação, apesar da Funai e União já terem sido multadas pela Justiça por conta da lentidão.


Karaí Perú fala da pressa com que tiveram que buscar a família da txamoi, pois poderiam mandar matá-lo, se soubessem que havia uma liderança indígena por lá. Conta que nas cidades mais próximas, os comércios não vendem para os indígenas, num cenário que faz lembrar o apartheid.


Kuña Tape Uyju, filha da líder espiritual, fala português com sotaque do Centro-Oeste e alguma desconfiança, pois não costuma falar com brancos. “O branco não dá valor ao índio”, diz. Relata casos de ameaças que envolvem fazendeiros, pecuaristas e políticos. “Eu queria que melhorasse um pouco, coisa ruim assim, a gente sofreu tanto. A gente tem que ter um pouco [de] medo, correr de coisa perigosa, para se defender”, diz. Em novembro de 2019 havia sido a última ameaça, com a chegada de um automóvel que disparou tiros à noite nos arredores da aldeia. 


Daí se iniciaram os cantos de socorro, como espécie de oração, feitos pela txamoi e sua família, acolhidos a quilômetros de distância no litoral capixaba. Kuña Jekoaku havia sonhado com o mar, embora não o conhecesse. Todos riram lembrando que quando ela viu caranguejos e goiamuns sugeriu que pudessem ser usados para arar a terra.


Em Aracruz, a família se sente tranquila em relação ao ambiente hostil em que viviam. As crianças se pintam com jenipapo e brincam à beira do rio. A presença da txamoi é considerada de grande importância pelos anfitriões que a recebem pois possui conhecimentos espirituais e medicinais desconhecidos ou perdidos pelos parentes de Aracruz, embora ainda necessite buscar mudas de mais plantas que não pôde trazer por conta da fuga apressada. Mas em Piraquê-Açu podem cantar não só de dia mas também à noite, o que não podiam fazer no Mato Grosso do Sul, sem luz elétrica e com medo de ataques de jagunços. Lá, também revelam haver sofrido com o não-entendimento ou intolerância de muitos de seus vizinhos e parentes, praticantes de religiões evangélicas, que não aceitavam os conhecimentos espirituais da txamoi.



Cacique Karaí Peru, da aldeira Piraquê-Açu, que ajudou a buscar os Guarani em Mato Grosso do Sul


Atualmente abrigados na Casa de Arte da aldeia Piraquê-Açu, a família pensa em começar a construir uma casa tradicional para ficarem mais acomodados, esperando que as coisas melhorem. Embora o cenário pareça tranquilo, o cotidiano é permeado por grande angústia. Três dos filhos da txamoi ficaram por lá e a família teme por eles. Não sabem notícias. A última esperança de contato foi literalmente por água a baixo junto com o celular da neta de Kuña Jekoaku que caiu no Rio Piraquê-Açu.


Clamam por notícias deles e pedem ajuda para buscá-los em Ywy Katu. Terminamos a conversa e eles nos convidam para a proximidade da beira do rio. A família senta no tronco de árvore e repete o que faz várias vezes ao dia: cantam juntos como oração, pedindo proteção a Ñanderu, o Deus-criador para os Guarani. Enquanto cantam, os familiares tocam chocalho e a txamoi soca a terra, batendo repetidamente nela com uma bastão de bambu. Pedem proteção.


“A gente tá vivo porque a gente sabe alguma coisa espiritual, só por isso”, havia dito Kuña Tape Uyju.

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