Certo dia seu Julião, o pai, um representante comercial, reuniu os quatro filhos e anunciou: “Comprei uma sapataria. Quem quer?”. Silêncio. Um, adolescente, queria ser engenheiro. Outra, mais velha, era servidora pública federal; outra, ainda uma criança. Sobrou o outro adolescente, que, sem hesitar, respondeu: “Eu quero”. Assim nasceria na Rua Sete de Setembro uma das mais tradicionais sapatarias de Vitória e do Espírito Santo: a Sapataria A Jato.
Em seu escritório, acima da loja, no primeiro andar do prédio que leva seu nome, o jovem empreendedor que hoje é um inquieto senhor de 69 anos puxa a calculadora eletrônica e martela as teclas em movimentos céleres: “2014 menos 52… Em 1962 em vim para cá”. Desde então as portas de aço da sapataria se abrem às 8h e se fecham às 18h para o verde e a tranquilidade da Praça Ubaldo Ramalhete.
“Tenho uma relação remota com o Centro. O que mais importante havia em Vitória estava na Rua Sete”, diz. João Julião tinha nove anos quando chegou ao Centro de Vitória. Vinha de Alegre com família. A família – pai, mãe e quatro filhos – fixou-se na Rua Gama Rosa. Ou seja: desde cedo João Julião respira os ares do coração do Centro de Vitória.
Lê-se em seus modos inquietos o gosto pelo trabalho. Julião confirma: “O dia que eu parar de trabalhar eu morro”. Ele começou a ganhar a vida ainda jovem, como bancário do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais. Ia pé para o trabalho – “andava de gravatinha, bonitinho, coisa e tal”. Mas ainda não tinha um ano de banco quando seu pai veio com a grande novidade.
O negócio adquirido era uma pequena loja de consertos localizada em uma casa ao lado da futura Sapataria A Jato. Os sapatos ficavam dispostos na loja; o maquinário ficava nos fundos; oito funcionários tocavam a sapataria. O pai de Julião a comprou em sociedade com o tio – e já pronta, com funcionário, maquinário, tudo.
Julião aceitou. A intuição, ou, de outro modo, tino empreendedor, lhe disse que estava perdendo tempo no banco. “Eu senti que eu tinha futuro. Eu estava trabalhando no que era meu e aqui tinha um movimento muito bom”, analisa. Especialmente nos anos 60 e 70, o quente de Vitória se encontrava na Rua Sete de Setembro. A política, a economia e a cultura da cidade se encontravam ali.
Há ainda outro fato, mais específico: antigamente, como se diz hoje, as coisas eram feitas para durar. As pessoas, então, cultivavam o hábito de consertar seus pertences em caso de avaria. O conserto de um sapato lhe garantia uma boa sobrevida. Hoje, não, como se sabe. Estragou? Joga fora e compra outro. “Hoje a maioria dos calçados nem tem mais conserto”, diz Julião.
Se a infância foi saboreada em Alegre, a juventude foi desfrutada no Centro de Vitória. Os olhos sorriem e ele solta um prazeroso “Ah!” quando recorda os verdes anos. “Não sei se você lembra, mas tinha o Britz Bar, que era ali”, diz, apontado para o outro lado da Ubaldo Ramalhete, no bar onde fervilhava a boemia capixaba.
“Minha juventude foi toda passada em volta do Britz Bar e o Fluminensinho [tradicional clube capixaba de futebol de salão], que era nessa redondeza aqui”, lembra. A memória mais viva é do Britz. “Vi a inauguração do Britz, o fechamento do Britz. Ele era o que o que existia de mais moderno. Intelectuais da época viviam ali, jornalistas, também. Garotão queria aparecer, vinha para cá”.
Do outro lado da praça, a vida também era boa. O nome da Sapataria, por exemplo: A Jato. Não é capricho, mas um diferencial no mercado. É que antigamente o conserto de sapatos se fazia à mão. Mas na sapataria de Julião a costura era à máquina. Em uma a troca de sola demandava uma semana. Já na Sapataria A Jato… “Eu, se chegasse de manhã, entregava na tarde do mesmo dia”.
Julião também zelou pelos pés do poder capixaba. Sua sapataria cuidou dos sapatos de muitas autoridades da terra. “Todos, todos, todos. Todos vieram aqui”, crava, para em seguida enumerar alguns: Eurico Rezende, Arthur Carlos Gehardt, José Ignácio, entre outros, puseram seus pisantes aos cuidados da Sapataria A Jato.
“De modo geral, eu vou dizer uma coisa: foi difícil uma família aqui de Vitória não ter vindo consertar alguma coisa comigo. Isso eu falo de peito aberto. Não só de Vitória, mas de todo o Estado, também. Em termos de sapataria, marquei uma época. Fala sem pretensão, arrogância. Eu acho meu serviço muito bom. Eu sou exigente”, fala, realmente sem traços de pretensão na voz.
João Julião diz que não tem do que reclamar de trabalhar no Centro. Considera o bairro mais seguro que muitos na cidade. E comunga da opinião da filha arquiteta. Esta, sempre que pode, lhe diz: “Pai, o Centro é lindo!”.