“Pecado hediondo” em 1700, masturbação ainda é tabu no Século XXI, mas cresce na luta pela emancipação feminina
Espírito Santo, Século XXI. Recordes de feminicídio e outras violências continuam sangrando as cidades e o campos, as periferias e as áreas nobres. Enquanto isso, o direito feminino ao prazer é tratado como assunto menor. E a masturbação, como pornografia e tabu. Conectar as duas pautas, no entanto, da violência e do prazer, é necessário e, talvez, a forma mais eficiente de obter resultados expressivos nas duas esferas.
“Fala-se muito sobre feminicídio, mas muito pouco da libertação do prazer”, observa a ativista social Crislayne Zeferina. Libertação do prazer que, sublinha, “é um dos aspectos de emancipação do corpo feminino sobre as violências que ele sofre”. “Libertação sexual perpassa por se perceber um corpo que tem direito ao prazer. Temos que quebrar esse tabu religioso do prazer corporal. Até que momento você é dona do seu corpo ou outro é dono do seu corpo?”, questiona.
“Uma coisa é a pornografia, outra é a sexualidade. Quanto mais a mulher se conhece, mais ela tem estímulo por si mesma. E ela precisa se conhecer para dar limite a outra pessoa, saber e dizer o que pode e o que não pode”, explica a psicóloga Claudia Calil, que utiliza a Medicina Psicossomática e a Neurociência no tratamento de distúrbios sexuais que atende em sua clínica.
No Território do Bem – região de Vitória que engloba nove bairros periféricos que sofrem com falta de políticas públicas básicas e excesso de presença policial repressiva – Crislayne coordena o Conectando Mulheres, grupo hoje que conta com cerca de 50 mulheres que se encontram periodicamente para conversar sobre direitos sexuais, direitos humanos e direitos sociais.
Presenciais antes da pandemia, as rodas de conversa agora ocorrem pela internet. Em uma delas, realizada em parceria com o Instituto Alveare, a palestrante explicou sobre a anatomia da vagina e a função do clitóris, esse órgão que existe com a única e exclusiva função de gerar prazer para a mulher (sim, diferente do homem, cujo pênis tem função sexual, reprodutiva e excretora, o clitóris existe apenas para dar prazer).
Naquele encontro, chamou atenção a reação de uma das participantes, uma mulher que tinha seis filhos e não sabia o que é o clitóris. “Ela chegou em casa e ensinou para o marido”, conta Crislayne. “Mulheres ainda são usadas como depósito de sêmen dos maridos, para gerar filhos e dar prazer somente a eles”, critica.
“O prazer da mulher ainda é bloqueado. Ela ainda é um instrumento para dar prazer ao homem”, reforça Claudia Calil. “A mulher é o próprio prazer e esse prazer ela pode obter com ela mesma”, afirma. “Sentir prazer consigo mesmo não é pornografia”, orienta.
A partir das próprias experiências e do aprendizado com o Conexão de Mulheres, Crislayne entende que “a libertação sexual tem que ser política pública”, com educação sexual acessível e continuada, pondera a ativista social.
Portal da vida
Terapeuta tântrica, Jéssica Deva Harischandra concorda. “A nossa yoni [vagina] é o ‘portal da vida’ em sânscrito [idioma original da Índia e ainda utilizado no Yoga]. Mas usa-se qualquer nome pra falar dela e permite-se a qualquer um adentrar nesse espaço que é sagrado. É triste pensar que a maioria das nossas mães não tiveram orgasmo quando nos conceberam. E ainda hoje a gente não tem direito a uma educação sexual. Seria tão importante que todas as pessoas tivessem diálogo aberto sobre isso!”, recomenda.
Há quase trinta anos, no entanto, uma tentativa de inserir a sexualidade na grande curricular das escolas acabou em demissão. Em 1994, a então chefe do departamento federal de Saúde Pública (Surgeon General) dos EUA, a médica Jocelyn Elders, foi demitida logo após ter afirmado, durante conferência sobre AIDS numa reunião da Organização das Nações Unidas (ONU), que a masturbação era uma parte normal da sexualidade humana e que deveria ser ensinada.
Em sua dissertação de Mestrado em Psicologia defendida em 2014 na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), “Investigando o papel da masturbação na sexualidade da mulher”, Sérgio Werner Baumel citou o episódio a partir do editorial publicado pela respeitada revista médica
The Lancet.
“Penso que isso é algo que é parte da sexualidade humana, e é parte de algo que talvez devesse ser ensinado. Mas nós ainda não ensinamos nossas crianças nem mesmo o básico. Sinto que nós já tentamos a ignorância por muito tempo, e é hora de tentarmos a educação”, teria dito a médica, na época com 61 anos, ao ser perguntada se a masturbação deveria ser ensinada como forma de prevenir infecções sexualmente transmissíveis.
“Jocelyn era a primeira mulher negra a assumir o cargo máximo dentro do Departamento Público de Saúde nos EUA”, ressalta a sexyshop virtual La Dolceta em uma publicação de maio passado, em alusão ao “Mês Internacional da Masturbação”. “A declaração foi suficiente para acabar com a sua carreira prematuramente, sendo considerada uma demissão injusta por grande parte da população que a apoiava”, registra o post.
A demissão, ressalta, foi feita pelo então presidente “Bill-eu-não tive- relações- com-essa-mulher-Clinton”, ironiza La Dolceta. “O acontecimento teve repercussão e começou a gerar uma ampla discussão a respeito da masturbação [e] por causa desse mês emblemático em volta do assunto ‘masturbação’, a celebração teria sido criada em São Francisco e nos outros estados posteriormente e é celebrada até hoje nos EUA, de diferentes formas”, relata.
Pecado hediondo
Sérgio Werner Baumel remonta ao início do século XVIII em busca dos primeiros registros sobre a associação da prática da masturbação com “pecado, vício, doença e problema de educação” para ambos os sexos. Por volta de 1712, conta, “a publicação de autoria anônima do texto denominado ‘Onania; ou, o pecado hediondo da auto poluição e todas as suas consequências assustadoras”, prestava “conselhos espirituais e físicos àqueles que já se prejudicaram por essa prática abominável”.
Tal ponto de vista, prossegue Sergio, “perdurou por aproximadamente dois séculos”, sendo modificado lentamente a partir de meados do século XX, com registro em várias publicações médicas ao redor do mundo, quando então a masturbação passou a ser considerada “não apenas como não patológica, mas até mesmo como benéfica para o bom desenvolvimento da sexualidade feminina, sendo inclusive prescrita como parte do tratamento das disfunções sexuais”.
Especificamente na mulher, destaca Sergio citando publicação de 1982 de Stock e Geer, “há correlação entre a frequência do uso da fantasia masturbatória e a resposta genital medida em laboratório”. No estudo, “as mulheres que relatavam o uso mais frequente de fantasias em sua atividade diária tiveram maior resposta vaginal, medida por fotopletismografia, tanto em um período em que foram instruídas verbalmente a elaborarem fantasias sexuais por cinco minutos quanto durante a exposição a um vídeo erótico”.
Vida orgástica
Os benefícios do orgasmo, salienta Jessica Deva Harischandra, extrapolam os momentos finais do ato sexual. O clímax sexual, sublinha, “libera uma quantidade enorme de hormônios, ocitocina, endorfina” e que “manter esses níveis altos de hormônio no dia a dia é muito bom”. Como? Na terapia tântrica, o uso do vibrador é peça-chave.
“No meu trabalho, o vibrador é muto importante porque mantém o nível de orgasmo. São 40 minutos de orgasmo contínuo. É incrível. Então é possível nesse momento entrar em estado meditativo, estado alterado de consciência, acessar memórias, às vezes da infância, momentos exatos de situações traumáticas, curar feridas, ressignificar. Tem gente que vomita, chora, faz xixi, joga isso fora”, relata.
Para além do ritual terapêutico, no entanto, o vibrador é um auxiliar de destaque para a autodescoberta do prazer e para a manutenção de um estado de bem-estar e saúde integra. “Eu dou de presente para as minhas amigas que têm ou não namorado e digo: ‘isso vai te salvar'”, conta Crislayne Zeferina. “Usar vibrador com namorado não é estranho. Às vezes o outro não consegue chegar no prazer que a gente quer e ele não é obrigado a isso. Os namoradores têm resistência no início, mas depois acabam entendendo”, ensina. “A gente vive sob uma prisão religiosa que tenta nos proibir de ter prazer. Temos que tirar essa manta branca, conhecer nossos corpos e nos tocar. Pecado é deixar homens entrarem em nossos corpos e não ter vida mais”, dispara.
Jessica atesta. A libertação do prazer, quando trazida para o cotidiano de homens e mulheres, provoca transformações individuais repetidamente constatadas, com possibilidades de transformação social ainda não mensurada. “Você ser uma pessoa orgástica é muito mais do que ter muitos orgasmos, é ter prazer com a vida, é sentir o vento, se conectar com a natureza, estar com pessoas que vale a pena a troca, fazer o seu trabalho com prazer”, descreve.
E alguém duvida que uma sociedade feita de pessoas com tal nível de liberdade, prazer e consciência integral têm um potencial imenso de ser igualmente mais justa, pacífica e próspera?