Sindemia e não pandemia. Um novo entendimento da Covid-19 começa a se difundir na comunidade científica, salientando sua dimensão social e trazendo novas possibilidades de enfrentamento, muito mais efetivas. A natureza sindêmica reposiciona os aspectos sociais na análise da crise. De acessórios, eles se mostram centrais para o devido controle da doença nos quatro cantos do planeta e, essencialmente, nas regiões onde as desigualdades sociais são mais acentuadas, como o Brasil e o Espírito Santo.
A nova classificação da Covid-19 foi defendida por um editorial da revista científica The Lancet publicado no final de setembro. Em reportagem publicada no último sábado (10), a BBC Brasil destaca um trecho do texto: “Não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protetora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a Covid-19 vai falhar. A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da Covid-19”, afirma o editor da Lancet, Richard Horton.
“Não é só uma mudança de nome, mas de abordagem. A gente deixa de pensar na abordagem da epidemiologia clássica, sobre os fatores de risco de cada pessoa, pra pensar nos fatores sociais”, afirma a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel.
“Não adianta olhar apenas para medicamento e vacina, tem que olhar as condições estruturais da sociedade, melhorar as questões estruturais, como acesso a saúde, educação, saneamento, habitação, alimentação”, explana.
A obesidade, exemplifica, uma das comorbidades mais presentes entre os doentes mais graves da Covid-19, há muito vem se deslocando para a população mais pobre, porque ela tem acesso a alimentos de pior qualidade, mais ricos em gorduras e açúcares e pobres em nutrientes. “Existem cada vez mais pessoas desnutridas e obesas”, pontua.
Situação que é agravada pela falta de acesso aos serviços de saúde que permitem o devido controle dos índices de massa corpórea, suscitando ou agravando outras doenças crônicas também na lista das comorbidades mais letais, como hipertensão e diabetes.
No editorial, Richard Horton explica que se reportou ao termo cunhado pelo cientista estadunidense Merril Singer na década de 1990. Médico, antropólogo e professor universitário, Singer se baseou em estudos feitos com portadores de HIV membros de comunidades de usuários de drogas injetáveis nos Estados Unidos, quando verificou que as condições sociais desfavoráveis eram decisivas para a maior mortalidade da AIDS entre aquelas pessoas.
“Ele percebeu que as pessoas que tinham AIDS, usavam drogas e viviam no contexto de comunidades de baixa renda, estavam submetidas a uma sinergia de fatores que dificultava o acesso aos serviços de saúde, levando a um desfecho de mortes muito maior. Viu então que a AIDS não era só uma pandemia, mas uma sindemia, pois tinha sinergia com todas essas questões do contexto social”, explica Ethel.
À BBC, Singer afirmou: “temos que lidar com os fatores estruturais que dificultam o acesso dos pobres à saúde ou a uma alimentação adequada”. Do contrário, enfatizou, corremos o sério risco de “enfrentar outra pandemia como a Covid-19 no tempo que leva para uma doença existente escapar do mundo animal e passar para os humanos, como foi o caso do ebola e do zika, e que continuará a ocorrer à medida que continuarmos a invadir o espaço das espécies selvagens, ou como resultado da mudança climática e do desmatamento.”
“A pobreza é letal”
Ethel conta que os cientistas, desde o começo, já vinham percebendo essas conexões. “Nossos dados, principalmente sobre os óbitos, já refletiam isso, e agora temos uma teoria pra embasa-los”, diz. “A Covid-19 escancarou as desigualdades sociais. A população que está morrendo mais é a que tem um contexto social pior, que vive em condições de pobreza”, afirma, resumindo a
principal conclusão de um estudo realizado pelo Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), do qual ela faz parte.
No artigo Fatores associados ao óbito hospitalar por Covid-19 no Espírito Santo, publicado no final de setembro, os cientistas analisaram as pessoas cujos desfechos hospitalares se encerram até 14 de maio. Das 889 que haviam se internado nos hospitais capixabas até a data, 200 receberam alta e 220 foram a óbito, sendo a primeira internação ocorrida em 26 de fevereiro e o primeiro óbito em 20 de março e perceberam que as que foram internadas em unidades hospitalares públicas tiveram oito vezes mais chances de morrer.
O mais importante, no entanto, é que o estudo verificou que o motivo da maior mortalidade desses pacientes não foi o tratamento oferecido pelos hospitais e sim o seu histórico de saúde, mais debilitado, em média, do que os pacientes internados em hospitais privados. “A pobreza é letal”, declara Ethel, remetendo-se aos mesmos argumentos discorridos sobre a abordagem sindêmica da Covid-19: pessoas mais pobres têm uma alimentação de pior qualidade, menos acesso à educação, saneamento, habitações salubres e serviços médicos para prevenção e acompanhamento de doenças crônicas.
Gestores municipais
A nova abordagem científica, no contexto das eleições municipais, ressalta a importância dos gestores e legisladores locais. “Vai ser um desafio pros próximos prefeitos e vereadores, de repensar os problemas das cidades, de um ponto de vista mais estruturante, de melhores moradias, melhor acesso à saúde, até porque a atenção primária à saúde é de responsabilidade das prefeituras. Vai ser fundamental pra que tenhamos melhores resultados no enfrentamento a essa e às próximas pandemias e sindemias que surgirão”, afirma.
Ethel ressalta ainda a necessidade de que a saúde primária tenha capacidade de lidar com muitas doentes e doenças novas, surgidas durante esses primeiros meses de Covid-19. “Muitas pessoas ficaram sem procurar o serviço de saúde quase que o ano inteiro. É preciso ter projetos estruturantes pra atenção primária à saúde e criar cidades mais saudáveis”, conclama. “Saúde é interdisciplinar”, salienta, invocando a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que enfatiza o “completo bem-estar, físico, mental e social”.