Desigualdades socioeconômicas, falta de acesso ao pré-natal e à educação sexual estão entre as principais causas
Mulheres negras representaram mais da metade da mortalidade materna no Espírito Santo em 2019, de acordo com os últimos dados do DataSUS. Na ocasião, o Estado registrou 29 óbitos maternos, incluindo mulheres que morreram com complicações durante a gravidez, no parto ou no período do puerpério. Desse número, 16 eram mulheres negras, as mesmas que além da falta de acesso a políticas de Saúde, lidam com a subnotificação nos casos de mortes provocadas por abortos.
Nesse mesmo ano, o Espírito Santo também registrou quatro óbitos maternos tardios, aqueles que acontecem após a gravidez, mas são motivados por doenças, transtornos respiratórios ou cardiovasculares específicos do período perinatal, que vai das 22 semanas completas de gestação aos sete dias completos após o parto.
As 16 mortes consideram a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a população negra (soma de pretos e partos). Neste caso, no Estado, morreram sete mulheres negras e nove declaradas pardas.
Pesquisadoras do grupo Desenvolvimento Social e Primeira Infância do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Arelys Esquinazi Borrego, Leila Menandro, Edineia Oliveira e Maria Lúcia Garcia são autoras do artigo “Maternal mortality in Brazil between 2000-2017: persistent social inequalities”, que aborda as relações entre a desigualdade social e mortalidade materna no Brasil.
Segundo elas, as principais causas diretas da mortalidade materna no país estão associadas aos transtornos hipertensivos, às complicações relacionadas ao puerpério, aos problemas do trabalho de parto e ao aborto.
Entre as mulheres negras, um dos fatores determinantes é a falta de acesso ao pré-natal. Após uma consulta a dados do Sistema Único de Saúde (SUS), as pesquisadoras identificaram que, em 2019, apenas 59,9% do total de mulheres negras tiveram um número de consultas adequado durante a gestação no Brasil. Entre as mulheres brancas, o percentual foi de 75%.
Essa falta de acesso ao número adequado de consultas pode ser explicada por uma série de fatores socioeconômicos. Um deles são os postos de trabalho que essas mulheres ocupam. As pesquisadoras lembram que pessoas racializadas, em geral, têm formas de emprego mais precárias e com menor garantia de direitos trabalhistas. “Para muitas destas mulheres, comparecer à consulta pré-natal em horário de trabalho pode colocar em risco seus empregos e fontes de renda, dentre outras questões”, ressaltam.
Racismo estrutural e a maternidade fatal
As desigualdades econômicas também são fatores determinantes. Os planos de saúde e o acompanhamento na rede privada geralmente oferecem mais consultas, mas não chegam a todas as mulheres negras, pelo menos não tanto quanto às mulheres brancas. “Populações racializadas encontram-se localizadas nas faixas mais baixas, sob o ponto de vista da distribuição da renda, e são maioria dentro da população em situação de pobreza e extrema pobreza”, lembram as autoras.
Elas apontam que os diferentes níveis de escolaridade e instrução formal também influenciam os conhecimentos sobre autocuidados durante a gestação, parto e puerpério, interferindo na educação sexual e, de forma geral, no acesso à atenção à saúde.
Para além disso, mulheres não brancas precisam lidar com as desigualdades de tipo territorial e regional, ocupando locais com baixa cobertura e qualidade dos serviços de atenção pré, peri e pós-natal.
Gravidez e pandemia
Em um mundo pandêmico, desde 2020, esses problemas são agravados. Um artigo de pesquisadoras da Unesp, UFSCar, UFSC, Imip, Unicamp e Fiocruz identificou que a mortalidade materna em mulheres negras com Covid-19 foi quase duas vezes maior do que a observada em mulheres brancas.
O estudo “Disproportionate Impact of Coronavirus Disease 2019 (Covid-19) Among Pregnant and Postpartum Black Women in Brazil Through Structural Racism Lens” pesquisou casos em gestantes ou puérperas com dados completos sobre etnia até 14 de julho de 2020.
No ano passado, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) recomendou que os países das Américas aumentassem a atenção com as gestantes durante a pandemia, garantindo os serviços de pré-natal. A orientação se baseou em estudos que indicaram a maior probabilidade de mulheres grávidas desenvolverem formas graves da doença.
Políticas Públicas
Apesar de estar entre as principais causas da mortalidade materna no Brasil, os números de mortes provocadas por abortos podem ser ainda maiores. As pesquisadoras da Ufes lembram que esses números podem estar subestimados, já que o aborto ainda é considerado ilegal e feito de forma clandestina.
As autoras explicam ainda que existe uma forte correlação entre a ausência ou baixo acesso à educação sexual e reprodutiva e as altas taxas de gravidez não planejada, sobretudo entre as pessoas jovens. “A maioria dos casos em que a gravidez indesejada acontece é por falta de conhecimento sobre como lidar com as relações sexuais quando jovens, além de enfrentar uma série de tabus, estereótipos, etc.”, apontam.
Para elas, é preciso avançar em políticas relativas ao direito ao aborto e à educação sexual e reprodutiva como direito de todos. “No Brasil, apesar de haver uma luta social, sobretudo dos movimentos feministas, em defesa do direito ao aborto por escolha da mulher (ou pessoa que gesta), essa pauta nunca chegou a ser votada no Congresso Nacional”, ressaltam.
Além da intervenção do sistema educacional, por meio de programas específicos desenhados por especialistas, elas acreditam que o tema deva ser pautado em outros espaços de socialização com as famílias. “Um primeiro passo para decidir conscientemente sobre nossos corpos e exigir nossos direitos sexuais e reprodutivos como mulheres, além de ter uma sexualidade mais segura e plena, é ter acesso aos conhecimentos básicos sobre essas temáticas. Educação sexual é fundamental para uma decisão mais consciente e responsável sobre nossos corpos”, destacaram.