Para a doutora em Bioética Elda Bussinger, postura do Hucam e violações dos direitos de vítima de estupro devem ser investigadas
Não se sustenta o argumento de incapacidade técnica para realizar o procedimento de interrupção da gestação da menina de dez anos que engravidou ao ser estuprada pelo tio em São Mateus, norte do Estado, alegado pelo Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam). A avaliação é da doutora em Bioética e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, Elda Bussinger. “É uma hipocrisia violenta!”, denuncia.
A especialista afirma que “houve omissão do Hucam”. O hospital, que é referência, se negou a fazer o procedimento, alegando que o protocolo interno da instituição abrange fetos com até 500 gramas e gestações com até 22 semanas, menores que os 537g do feto e 22 semanas e 4 dias, medidos em ultrassom feita pela instituição quando a menina deu entrada no hospital, na noite do dia 14.
“Não é possível que o Espírito Santo não tenha um médico apto para um procedimento tecnicamente singelo como esse. É complexo do ponto de vista psicológico, mas tecnicamente é simples”, expõe Elda. “Como a obstetrícia capixaba aceita isso?”, questiona, destacando também a omissão da equipe do Programa de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), programa nacional que, no Espírito Santo, é executado no Hucam desde 1998.
“O Pavivis saiu profundamente fragilizado desse processo”, lamenta. “Não são apenas os médicos, o programa é composto por vários profissionais, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos. Será que os outros profissionais também não quiseram? Quem de fato tomou a decisão de abandonar a criança e fragilizar o programa?”, inquire.
Para a especialista, parece tratar-se de mais um exemplo em que os profissionais escondem suas convicções religiosas, mesmo quando são elas o motivo da recusa em realizar determinados procedimentos médicos.
Objeção de consciência
Essa recusa é prevista no código de ética médico sob o nome de objeção de consciência. “O código de ética médica dá essa liberdade, mas ela tem limites. Não existe direito absoluto. Nem o direito à vida é absoluto, porque na guerra pode-se matar, na legítima defesa também. Quando coloca em risco a vida do outro, não pode. Ocorre então uma colisão de princípios ou uma tensão entre direitos”, explica.
Polêmico, esse recurso legal “é muitas vezes escamoteado, de várias formas”, pois o profissional que o invoca costuma “ficar marcado”, explana Elda. “Pra não enfrentar o debate da objeção de consciência, muitas vezes se usam argumentos que não se sustentam. A meu ver, a equipe do Pavivis decidiu por esse caminho”, pondera.
No caso da menina grávida, a objeção de consciência sequer poderia ser reivindicada, pois o Ministério da Saúde e o Código de Ética Médico estabelecem proibições a ela quando: pode impedir a realização de um procedimento disposto em lei – como é o caso da interrupção de gravidez em caso de estupro; quando impõe barreiras ao acesso a um direito legal – também aplicado ao caso da criança; e quando não é possível que o atendimento seja transferido a outro profissional, que foi exatamente o que aconteceu no Hucam, que se omitiu por completo de atender a menina, tendo sido necessário transferi-la para o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), em Pernambuco.
Investigações
Para a especialista, foram várias as violações de direitos humanos da menina desde sua chegada no Hospital Universitário de Vitória e “todas elas precisam ser investigadas”. De fato, já há várias ações judiciais relacionadas ao caso. Além do pedido de indenização de R$ 1,3 milhão contra a ativista Sara Winter, estão sendo investigados o vazamento de prontuário da paciente de dentro do próprio Hucam e vazamentos de informações pessoais da vítima ainda em São Mateus.
Ressaltando que não é possível acusar ninguém a priori, Elda enfatiza a necessidade de investigação para que o “condão da Justiça” responsabilize os culpados e não criminalize inocentes. “A menina passou um dia e meio no Hucam até ser transferida pra Pernambuco. Nesse tempo houve negociações dentro do Hospital e do Pavivis. Houve aumento da exposição da menina e as pessoas responsáveis precisam ser identificadas”, salienta.
Outra pergunta que emerge de toda essa tragédia, acentua a vice-presidente da SBB, é se outras meninas, jovens e adultas, já passaram por violações semelhantes ao longo desses 22 anos do funcionamento do Pavivis dentro do Hucam. “Será que nesses anos todos de existência, esse é o primeiro caso que aconteceu?”.