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‘Estamos tendo que conviver com professores de Deus!’, ironiza Casagrande

Perguntado sobre proteção aos mais pobres, governador diz que tem decidido “entre uma medida ruim e uma pior”

Leonardo Sá

“Estamos na maior crise do mundo e tendo que conviver com os professores de Deus! Gente que tem solução pra tudo, mas [só] teoricamente, [porque] não consegue colocar nada em prática”. 

A declaração foi feita pelo governador Renato Casagrande (PSB) ao ser perguntado sobre quais medidas o seu governo planeja empreender para efetivamente proteger as populações mais vulneráveis do Espírito Santo frente à pandemia de Covid-19, durante coletiva de imprensa nessa quarta-feira (10), em que anunciou as medidas de restrição máxima de circulação de pessoas (equivalente ao lockdown) a serem adotadas quando a ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no Estado ultrapassar 90%. 


A pergunta teve por base um documento produzido por seu próprio governo, por meio da Secretaria de Economia e Planejamento (SEP) e do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN): a Nota Técnica nº 4/2020 do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), assinada por doutores e mestres do IJSN e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e publicada no portal da Universidade no mesmo dia da realização da coletiva.

Em suas considerações finais, os especialistas concluem que “com a entrada da pandemia em comunidades vulneráveis e com as análises do inquérito epidemiológico demonstrando que a maioria das pessoas vive em casas com cinco ou mais residentes, a fragilidade das medidas de isolamento social já tem sido demonstrada”.

Os autores afirmam também que “até o momento, o Espírito Santo não apresentou nenhuma medida para alocação de comunidades vulneráveis em casas de apoio, quarentena ou hotéis, que viabilizasse um isolamento real e impedisse a transmissão da doença”, ressaltando ainda que “não há um sistema planejado de busca ativa de casos, o que torna a dimensão três bastante deficiente”.

A dimensão três citada refere-se a um dos conjuntos de parâmetros definidos pela Organização Mundial da Saúde para orientar o processo de saída do isolamento social e afrouxamento de medidas de distanciamento durante a pandemia de Covid-19.

A primeira dimensão relaciona-se à comprovação do controle da pandemia, ou seja, quando o Índice de Transmissão (Rt) é inferior a 1. Enquanto a segunda trata de avaliar se “o sistema de saúde tem ou não capacidades para enfrentar um eventual surto de casos Covid-19, e a terceira é composta de parâmetros que atestam se “o sistema de vigilância em saúde tem ou não capacidade para detectar os casos novos (incluindo assintomáticos) e membros da comunidade não-infectados, e realizar o manejo por meio das medidas de distanciamento social e quarentena, bem como prevenir novos surtos de casos”. 
Na nota, os autores explicam que avaliaram as três dimensões da Organização Mundial de Saúde (OMS) à luz dos dados no Espírito Santo, especialmente os gerados pela segunda fase do inquérito sorológico, divulgado no último dia 1 de junho, com pesquisas de campo feitas nos dias 27, 28 e 29 de maio. E a resposta foi não para todas as três perguntas.

Não para a primeira, porque o Rt do Estado voltou a subir, estando, segundo dados do segundo inquérito, em 1,85 e com tendência de crescimento. Não para a segunda, porque “ao se considerar a projeção dos números de casos infectados e de leitos disponíveis, é possível inferir que até meados de junho não haverá leitos de UTI suficientes para todos os acometidos pela forma mais grave da Covid-19”. 
E foi diretamente ao terceiro não dos especialistas, destacado na pergunta feita durante a coletiva, que o governador retrucou. “É preciso que as pessoas que apresentam teoricamente alguma sugestão, apresentem como aplicá-las também (…) É fácil dizer ‘tem que isolar essas pessoas em hotéis’. Mas essas pessoas em hotéis vão estar contaminando as que não estão contaminadas. Tem que transformar cada hotel em hospitais com quartos de isolamento. Não é uma tarefa fácil”. 

Refém da iniciativa privada

Ao considerar as explanações de diversos especialistas do Estado e do pais, investir efetivamente no isolamento social da grande parcela da população que não tem condições próprias para isso é mais barato do que drenar os recursos públicos preferencialmente para a iniciativa privada, como avalia a doutora em Bioética e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, Elda Bussinger.

“O Estado é refém da iniciativa privada”, afirma. “Abandonou o que realmente resolveria o problema e implementou uma política de compra de leitos no privado ao invés de investir no público, construindo equipamentos próprios. Nós deveríamos ter tido equipamentos em quantidade suficiente pra não ficarmos reféns da iniciativa privada”, sugeriu.

Posição semelhante tem o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Domingos Alves, integrante do Grupo Covid-19 Brasil, formado por cientistas independentes, oriundos de diversas instituições de pesquisa brasileiras, dedicados, voluntariamente, a avaliar a evolução da Covid-19 por meio da ciência de dados e contribuir com os governos e a população no enfrentamento da crise.

Em entrevista a Século Diário, Domingos citou uma normatização da Organização Mundial de Saúde (OMS) que diz ser preciso “estabelecer um pacto com a população”. “Não é dizer ‘fique em casa'”, salientou. “Tem que levar [a pessoa confirmada com a infecção, após teste PCR] pra um hotel. Eu digo mais ainda: hotel cinco estrelas com café da manhã, almoço e jantar. Durante quinze dias, pra ter certeza que não está transmitindo mais. Isso é caro? É infinitamente mais barato fazer isso do que manter as pessoas no hospital”, comparou, mesmo tendo como base o valor de R$ 2,5 mil a diária de UTI. No Espírito Santo, o secretário de Estado da Saúde, Nesio Fernandes, afirma que o valor da diária é de R$ 1,6 mil.

“Tem que investir”, enfatizou. “Na ausência do governo federal, como os governos dos estados irão investir? Na saúde da população ou das grandes empresas? Se todos os governadores no Brasil fizerem o seu trabalho adequadamente, devem pressionar o governo federal para liberar mais recursos”, orienta, lembrando que, do pouco anunciado pela União, apenas 7% já foram liberados em forma de auxílio emergencial.

‘Não somos o governo federal’

Um programa estadual de renda mínima, no entanto, é absolutamente rejeitado por Casagrande. “Não somos o governo federal. Quem tem condições de fazer um programa de renda mínima é o governo federal”, voltou a alegar, ao justificar a ausência.

No Espírito Santo, o governo investiu menos de 1% do PIB em linhas de empréstimos disponibilizadas no Banestes e no Bandes para microempreendedores individuais (MEIs), micro e pequenos empresários e trabalhadores da economia solidária, segundo estudo da economista Érika de Andrade Silva Leal, professora da Coordenadoria de Engenharia de Produção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) e pesquisadora do Observatório do Desenvolvimento Capixaba (ODC), já mencionado em matéria de Século Diário.

Além do pequeno valor, ressalta Érika, “a natureza das medidas anunciadas é majoritariamente voltada ao alívio do fluxo de caixa das empresas, não privilegiando o pilar da criação de uma rede de proteção social, que para o caso capixaba ficou quase que exclusivamente na dependência do auxílio anunciado pelo Governo Federal”.

Ainda mais grave, os empréstimos também não chegam ao seu destino original, já que as condições para aprovação dos pedidos não foram adaptadas para a situação excepcional da pandemia, destacou, na mesma matéria, o economista e professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Arlindo Villaschi.

“São coisas muito cínicas”, indignou-se. “Veja a burocracia, as garantias exigidas! Não fizeram adaptação praticamente nenhuma. Em alguns casos baixaram a taxa de juros, mas a burocracia continua a mesma”, expôs o economista.

‘Entre o ruim e o pior’

Consciente dos interesses aparentemente concorrentes que precisa administrar cotidianamente – abrir o comércio versus apoiar o isolamento social; investir em estruturas próprias de saúde básica e preventiva ou priorizar a compra de leitos particulares, Casagrande admitiu, involuntariamente, que a arcaica visão maniqueísta da gestão pública coloca seu governo em situação de tensão máxima possível dentro da crise sanitária.

‘Aqui, como governador, eu tenho que decidir entre uma medida ruim e uma pior. Não tem nenhuma decisão boa aqui não, ou ela é ruim ou ela é ainda um pouco pior”, declarou. “Nessa hora a liderança não pode sair do seu equilíbrio e da sua responsabilidade. Nós estamos nessa fase de buscar muito equilíbrio, sabedoria e proteção divina pra que a gente possa proteger os capixabas”, rogou, complementarmente.

Justificativa

A nota técnica do NIEE/IJSN/SEP conclui ainda que “a alta taxa de contágio causará um aumento expressivo do número de casos e, consequentemente, de óbitos. Principalmente no interior do Estado, tendo em vista que a maior parte destas cidades não conta com serviços hospitalares locais. Neste sentido, os resultados demonstram que se torna necessária a adoção de medidas de mitigação mais restritiva”.

Citando orientações do Ministério da Saúde sobre as ações de medidas não farmacológicas durante a pandemia da Covid-19, os especialistas do NIEE argumentam que “o bloqueio total ou lockdown é o nível mais alto de segurança e pode ser necessário em situação de grave ameaça ao Sistema de Saúde” e que ele “é eficaz para redução da curva de casos e para dar tempo para reorganização do sistema em situação de aceleração descontrolada de casos e óbitos. Os países que implementaram, conseguiram sair mais rápido do momento mais crítico”.

O documento, portanto, baliza cientificamente a Sala de Situação de Emergência em Saúde Pública a decretar o lockdown, medida que pode ser adotada em breve, como ficou demonstrado durante a coletiva.

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