Obra relata episódios como o estelionato do Plano Nacional de Vacinação, com QRCode para documentos oficiais
Século Diário: O subtítulo do livro traz o verbo “lutar” antes de “existir”. Há algum propósito específico para essa ordem? A impressão que fica é de que, na sua visão, para existir nesses tempos difíceis, foi preciso antes de tudo, “lutar”.
Ethel Maciel: A ideia desse título é exatamente essa, expressar essa luta diária que nós mulheres temos que enfrentar todos os dias, pelo nosso espaço. Isso em todas as áreas e na ciência não é diferente, pois é um espaço muito masculino e inóspito para mulheres, bastante competitivo. É tudo muito mais difícil do que para os nossos colegas. O trabalho que a gente tem que fazer e o que a gente tem que dizer, nessa sociedade machista e patriarcal, é sempre muito maior, para chegar no mesmo resultado que os homens. Então, lutar vem sim primeiro, sim.
Na descrição do livro, você afirma que não se trata nem de uma biografia nem de um relato impessoal, mas sim de uma apresentação do teu olhar sobre a sua trajetória, “de uma mulher cientista que que viveu esse período em um governo que tinha na negação da ciência seu projeto político.” Quais foram os primeiros fatos relatados, que abrem o livro?
Eu conto quando foi primeira vez que a pandemia se fez concreta pra mim. O dia exato, mesmo. Reflito isso com os leitores, acho que cada um se lembra mais ou menos, com maior ou menor exatidão, quando a pandemia ficou concreta para ele, passou a existir. Conto também das ações, ainda como vice-reitora, criando o Centro Operativo Emergencial [COE] na Ufes. E da ideia, como epidemiologista de doenças infecciosas, de explicar à sociedade o que estava acontecendo, o que me levou a escrever na página da Ufes sobre conceitos epidemiológicos de forma mais simples.
Em geral, ao longo do livro, eu falo muito sobre as escolhas, sobre como nossas escolhas vão nos levando a determinados lugares, alguns que a gente nem imaginava estar, mas que ao final descobre ser o lugar exato para estar naquele momento. E reflito também sobre esse tempo, esse tempo pandêmico, as nossas dores comuns, nossos medos, a vivência da morte. Falo sobre tudo isso mas termino com uma mensagem otimista.
Viver tudo isso a partir do Espírito Santo trouxe que peculiaridades a esse teu trabalho, que teve dimensão nacional? Uma certamente é o fato de que a pandemia começou poucos antes de você ter sido preterida pelo presidente da República na nomeação para a reitoria da Ufes, cargo para o qual você foi eleita democraticamente pela comunidade universitária capixaba.
Eu me preparei para assumir a Reitoria da Ufes. Quando eu criei o COE junto com outros colegas, decidi que não seria a presidente porque eu assumiria a reitoria, ficaria incompatível com as funções de reitora, então indiquei outra colega para ser a presidente. O mais difícil foi mesmo esse momento, quando eu sofro a violência política e não sou nomeada. Foram muitos dias difíceis que se seguiram, inclusive com a nova gestão assumindo a universidade, os nossos desentendimentos em torno do projeto que eu havia defendido nas urnas. Foi muito duro.
Mas, novamente abordando as escolhas, eu conto como poderia simplesmente ter seguido a minha vida, mas recebo um telefonema do secretário da Saúde [Nésio Fernandes] me chamando para uma reunião, isso três dias depois da não-nomeação na reitoria, para discutir as questões da pandemia. E eu escolho ir. Então eu vou dizendo como as nossas escolhas vão nos guiando. A partir dessa reunião, eu sou convidada para compor o grupo da Sala de Emergência, aí tem um capítulo que eu conto como foi essa experiência de atuar guiando as políticas públicas que estavam sendo feitas no Estado sob forte ataque do governo federal, e o negacionismo científico e as fake news, eu falo sobre tudo isso. Falo também sobre as divergências, quando eu saio da Sala de Situação, as divergências com as ações de gestão. Os capítulos vão contando sobre isso. Também falo que considero o governador [Renato Casagrande (PSB)], apesar de todas as nossas divergências, que são naturais, porque meu olhar é de cientista e o dele deve também levar em consideração a ciência mas tem outras questões. Mas eu considero que, nesse contexto que nós estávamos, ele se destacou como um dos melhores gestores, porque era um contexto bastante inóspito por parte do governo federal.
O lançamento do livro acontece às vésperas das eleições. Você tem marcado, em suas redes sociais, uma posição política muito bem definida, inclusive com denúncia dos erros do governo federal, resultado de uma postura negacionista em relação à vida e à ciência. Postagens, na verdade, que refletem ações que você empreendeu concretamente, como participar de um dos pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro enviado ao Congresso Nacional. O livro também faz esse trabalho político?
Eu falo da minha atuação no Plano Nacional de Vacinação, conto sobre aquele momento do estelionato do Plano Nacional de Vacinação pelo governo federal, o que aconteceu, o envio para o STF [Supremo Tribunal Federal] de toda a documentação com as denúncias, tem toda essa passagem. Falo também dos convites de vários partidos para que eu concorresse às eleições de 2022 e um pouco sobre as escolhas que fiz [de não concorrer].
Após as eleições, o livro tende a continuar sendo um relato com incidência política sobre a realidade brasileira, porque a luta pela valorização da ciência, da vida, da diversidade e da igualdade entre gêneros ainda tem um longo caminho a ser percorrido, seja em qual governo for.
O livro tem QRCode para vários documentos, as atas do Ministério da Saúde, as primeiras manifestações do Ministério Público Federal (MPF). Eu fiz um documento que vai ser histórico sobre esse período. A ideia é que fique esse registro histórico, para que a gente sempre se lembre desse período tão difícil e que impactou tanto as nossas vidas.