“Um milagre!” “A dor diminui muito, e sem efeitos colaterais dos antiinflamatórios”. “Me ajuda bastante com a dependência química”. “É incrível! O óleo ajuda muito a desativar os pontos-gatilhos de dor”.
Essas frases são extratos de depoimentos sobre os benefícios inéditos obtidos com o uso terapêutico da Cannabis, por pessoas de diversas idades que convivem com autismo, condropatia, tendinite, bursite, dependência química, ansiedade e contratura muscular.
Algumas pediram anonimato, devido ao grave preconceito que ainda paira sobre a planta, cuja produção, venda e consumo foram proibidos no Brasil e em cerca de 40 países a partir da assinatura do Tratado do Ópio, em 1925.
Com 27 milhões de anos de existência no planeta, 20 mil deles em convivência com a espécie humana, a Cannabis, ou maconha, tem, portanto, um lastro positivo muito maior na relação com a sociedade e que, agora, volta a ganhar corpo a partir das pesquisas e normas legais que normatizam o seu uso com fins terapêuticos.
O tema será discutido neste fim de semana (29 e 30) na segunda edição do Seminário Internacional Cannabis Medicinal – um olhar para o futuro, que a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) promove em parceria com a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), com apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no Instituto Europeu de Design (IED), na Urca, Rio de Janeiro/RJ.
“A maconha atua em um sistema fisiológico do corpo que é fundamental pra integridade da saúde: o sistema endocanabinoide”, afirma o médico, neurocientista e professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Menezes. Ativista pela legalização da maconha há quase duas décadas, João também integra o Grupo de Trabalho de Cannabis medicinal da Fiocruz e é um dos organizadores do seminário.
Esse sistema, explica, consiste em “uma maquinaria molecular que produz a maconha endógena” e que tem receptores para os canabidiol (CBD) e o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) da planta, quando fumada, inalada ou ingerida.
O uso terapêutico, relata, é antigo, por meio principalmente de pomadas, chás, óleos e manteigas. Fumar é mais recente e também pode ser usada terapeuticamente. Mas faz efeito mais rapidamente e com menor duração. E essas diferenças devem ser consideradas por quem for fazer uso, considerando o problema a ser tratado, a idade e a condição física do paciente. Mas assevera: “todo uso é terapêutico”.
Benefícios
O cigarro é a forma de uso do engenheiro de som Caio (nome fictício), 35. “Diminuí o uso recreacional em 90% há alguns anos. Por vezes tenho usado como relaxante muscular e no alívio de dores relacionadas a esforço físico repetitivo. Eu planto minha própria maconha quando acho que há necessidade. Para usar de forma medicinal, pesquisei o melhor tipo para as dores. Logo consigo sementes que vão me ajudar no processo”, relata.
O estudante Eud Ribeiro Nogueira também fuma e consegue produzir seu próprio óleo. “Quando fumo me ajuda na síndrome de abstinência e me dá disposição para trabalhar, fazer exercícios, estudar, me deixa mais equilibrado emocionalmente. O óleo já uso como calmante e transtorno de ansiedade”, diz.
Outras três entrevistadas fazem uso apenas do óleo. A advogada Amanda Rodrigues tem encontrado muitos benefícios para o autismo do filho, de nove anos. “Desde a primeira gota senti grandes mudanças. A auto-agressão diminuiu muito, ficou mais atento, começou a expressar mais emoção, diminuiu o tremor das mãos e a ansiedade por comida. Parece mais ativo e desperto e está compreendendo muito mais o que falamos com ele. Pronuncia algumas sílabas e palavras que há muitos anos não falava”, descreve. Por isso, a medicação alopática ministrada pela médica pôde ser diminuída a um terço. “Considero, pela quantidade de remédios alopáticos que já experimentamos nele, que o uso do CBD foi um milagre! Uma melhora que todos, família, escola e clínica perceberam”, comemora.
A herbalista Patrícia Maria Martins usou o óleo de CBD, com média e baixa concentração de THC, por dois períodos de cinco meses, em 2017 e 2018, para tratar contropatia de joelho e quadril, tendinite de joelho e bursite no quadril.
“Com poucas semanas a dor reduziu muito, além do inchaço e vermelhidão nas articulações dos pés. Há melhora no sono, na tensão muscular e na rigidez matinal. Sem falar na ausência de efeitos colaterais comparados com antiinflamatórios convencionais”, relata. A dificuldade, ressalva, “é encontrar médicos que tenham conhecimento dos benefícios e a maior de todas é a compra, pela burocracia e pelo valor”.
A professora Camila (nome fictício) diz que o óleo canábico, que ela obtém a partir de uma associação que pesquisa e produz o medicamento de forma legalizada, tem lhe dado alívio inédito para os problemas advindos da síndrome dolorosa miofascial. “É incrível!”, exclama.
“Tenho múltiplos pontos gatilhos de dor no corpo, que quando estão ativos mais de um de uma vez, eu entro em travamento, fico sem me mexer por muito tempo. Na última crise grave fiquei 42 dias na cama. O óleo ajuda muito a desativar esses pontos gatilhos”, conta. O cuidado, orienta, é para não usar demais, porque dá uma certa fadiga.
Antes de encontrar essa associação, ela pesquisou em sites estrangeiros de venda para o Brasil e se espantou com o preço, não tanto do remédio em si, mas das taxas e impostos pra importação. Dos R$ 1,8 mil, R$ 1,4 mil são de impostos, calculou. Atualmente, o valor que ela consegue é de R$ 350,00 num pequeno vidro de 30ml em média, que dura bastante, porque as doses são diluídas em azeite.
Sua defesa da popularização do óleo canábico no Brasil é enfática, resultado de sua própria experiência. “São síndromes, neuropatias e dores que são refratárias a todos os outros tipos de tratamento. E o que os médicos comuns fazem é encher a gente de corticoides e opioides que vão destruindo os nossos sistemas. Você não tem mais sistema digestivo, sistema autoimune, depois de um tempo, eles vão destruindo seu corpo mesmo. É o que minha mãe fala: você morre do remédio. Então, é incrível o uso do óleo canábico”, exalta.
Para além da liberdade de pesquisa, Camila defende a desburocratização da produção e venda. “Pesquisa a gente tem e também pode beber nas pesquisas mais avançadas, de países que estão nessa esteira há muito tempo, como Israel, que é quem mais pesquisa e se beneficia de um mercado medicinal da cannabis. A questão mesmo pra gente é a liberação da produção medicinal, pra não ficar mais refém dessa importação, com esses impostos caríssimos”, conclama.
Síndrome de Dravet
Camila lembra que todo esse movimento pela legalização do uso medicinal da Cannabis no Brasil começou pelas famílias de crianças com Síndrome de Dravet. “Foram pais saudáveis que corriam atrás pra cuidar de seus filhos, cujos ataques eram terríveis de epilepsia, crianças que chegavam a ter vinte ataques por dia e depois do uso do óleo canábico passaram a ter um ataque por mês, um ataque a cada três meses”, relata.
Essas associações então passaram a transmitir esses conhecimentos sobre o cultivo da planta e a produção do óleo. Mas também acabaram tendo que produzir o óleo para vender a pessoas que não têm condições de fazê-lo, por sua condição física, como a sua, com fadiga muscular crônica, ou cadeirantes, ou pessoas que moram em apartamentos muito pequenos, enfim.
A primeira família a conseguir essa autorização foi a da pequena Sofia, hoje com dez anos, diagnosticada ainda bebê com uma doença rara, que causa crises convulsivas constantes. Sua mãe, a advogada Margarete Santos de Brito, é diretora da Apepi, que promove o seminário junto da Fiocruz.
Segundo a Fioruz, existem hoje no Brasil oito mil pacientes autorizados a importar remédio à base de cannabis para diversos tipos de doenças. Além das já citadas na matéria, a Fundação destaca os benefícios para os pacientes de Alzheimer, que atinge 10% das pessoas com mais de 65 anos e 25% com mais de 85 anos, sendo inúmeros os casos que evoluem para demência.
Estudos clínicos
No mundo, há cerca de 300 estudos clínicos sobre cannabis medicinal e muitos desses especialistas, em diversas áreas, participarão do seminário. Entre eles estão Sidarta Ribeiro (professor titular de neurociências, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e secretário da SBPC); Ricardo Reis (mestre e doutor em Biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ênfase em neuroquímica); Sergio Sanchez Bustos (médico-cirurgião da Universidade do Chile, com especialidade em Saúde Pública, especialista em políticas de drogas e medicina cannábica); Ismael Galve-Roperh (doutor em Bioquímica e Biologia Molecular e professor da Universidade Complutense de Madri, onde lidera o grupo de pesquisa 'Canabinóides e neurogênese'); Emílio Figueiredo (advogado e diretor da rede jurídica pela reforma da política de drogas); Leandro Ramires (cirurgião oncológico, Universidade Federal de Minas Gerais); e Eduardo Faveret (neuropediatra e diretor médico do Centro de Epilepsia do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer). O evento também contará com um representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Recentemente, informa a Fiocruz, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu levar à consulta pública a proposta para liberação do cultivo e da produção de maconha no país para fins medicinais e científicos. A nova regra prevê o plantio restrito a lugares fechados por empresas credenciadas. As associações e familiares de pacientes têm hoje autorização na Justiça para a produção do extrato de canabidiol.
Crime inventado
“Conseguimos uma cunha, uma entrada, no muro da proibição”, poetiza o neurocientista João Menezes, que considera a legalização para usos gerais tão urgente quanto a facilitação do acesso ao uso terapêutico, pois muitas pessoas hoje estão na cadeia e até morrem por atuarem na venda ilegal. “Quem está na cadeia por cannabis não cometeu um crime de verdade, porque esse é um crime inventado”, provoca. “A proibição não tem o menor fundamental científico, médico, ético, nem legal”, assevera.
“Maconha medicinal é pra ontem. Regulamentação é pra hoje. Descobertas de novos medicamentos é pra amanhã”, diz, resumindo a pauta do ativismo social, político, médico e científico.