Mesmo com situação fiscal privilegiada, Estado força aumento da interação social entre os mais vulneráveis
O discurso é um, mas a prática é outra. Mesmo afirmando que “a prioridade é salvar vidas e proteger os mais vulneráveis”, jargão do governador Renato Casagrande (PSB) e do secretário de Saúde, Nésio Fernandes, desde a confirmação dos primeiros casos de Covid-19 no Espírito Santo, em março, caminham em direção oposta as medidas tomadas pelo governo do Estado a partir do Plano de Convivência com a Pandemia, lançado no dia 11 de maio, com a reabertura alternada do comércio de rua.
A avaliação é de pesquisadores ouvidos e lidos por Século Diário, que rejeitam qualquer amparo científico nas últimas decisões sobre reabertura do comércio, tanto de rua quanto em shoppings, e, muito menos, compromisso ético efetivo com os mais vulneráveis, a saber: negros, pobres, mulheres e crianças.
Primeiro os fatos: orientados por cientistas que participam da Sala de Situação de Emergência em Saúde Pública, Casagrande e seus secretários sabem que o coronavírus só será controlado, com redução da curva de contágio, com um isolamento social acima de 55% e com Taxa de Transmissão (Rt) abaixo de 1. Isso é dito e repetido em pronunciamentos e coletivas de imprensa dia após dia.
Mantido esse Rt, o Estado chegará a 15 de junho com a marca de 1.300 mortes pela Covid-19, mais de 700, portanto, em quinze dias. Sendo que durante todo o mês de maio, foram menos de 500. O crescimento exponencial da pandemia, adverte a especialista, só pode ser controlado e reduzido com a redução do Rt a menos de 1 e isolamento social acima de 60%. Na última sexta-feira (29), no entanto, o isolamento social divulgado pelo governo foi de 47,21%.
“Não existe possibilidade de aumentar o isolamento ou reduzir a taxa de transmissão com a reabertura dos shoppings e do comércio de rua”, assevera Ethel Maciel. “Agora penso que as medidas de extrema restrição deveriam vigorar em todo o Estado, pois a maioria dos leitos hospitalares está na Grande Vitória, onde o colapso, que já é iminente, vai prejudicar todos os municípios”, aconselha, lembrando que o MPF recomendou a decretação de lockdown no sul do Estado e detectou falha nos dados divulgados pelo governo em relação ao sul do Estado, onde, ao invés de 50%, a ocupação de leitos de UTI já teria passado de 80%, tendo ocorrido a negativa de leitos para oito pacientes na última semana.
Na sexta-feira (29), a ocupação de leitos de UTI na região metropolitana estava em 84,58%, acima, portanto, dos 80% que o governo afirmou acender a luz amarela de colapso, e próxima dos 90%, quando o lockdown precisa ser decretado imediatamente.
A própria secretária de Gestão e Recursos Humanos (Seger), Lenise Loureiro, reconheceu que, a considerar a experiência de reabertura do comércio de rua, há três semanas, a reabertura dos shoppings a partir desta segunda (1) não deve colaborar para o necessário e urgente aumento do isolamento social. “Quando abrimos o comércio de rua, a interação não subiu tanto. Vimos que é possível reabrir os shoppings. Havendo o compromisso de todos em ir a esses espaços em momentos de necessidade, com comportamento responsável por todos, essa interatividade não será aumentada”, declarou em coletiva que anunciou a medida.
Para além do aumento natural da interação social entre os funcionários e clientes dos shoppings, no transporte coletivo, especialmente, a equivocada medida tem reverberações que a tornam ainda mais perigosa, salienta Ethel Maciel. “Eu falei na sala de situação, que essa medida tinha que ser pensada de maneira global. Não adianta voltar uma coisa que movimenta muitos trabalhadores se as escolas e creches não estão funcionando. Cria um problema adicional. Como as crianças ficarão quando as mulheres têm que sair pra trabalhar? É um problema das famílias, mas a gente sabe que na maioria das vezes são as mulheres que cuidam das crianças, principalmente nas classes mais vulneráveis, onde as mulheres são chefes de família”, relata Ethel, lembrando que em apenas um shopping de Vitória, são mais de cinco mil trabalhadores, entre vendedores, auxiliares de serviços gerais, seguranças…
Há ainda o perigo da “sensação de que a vida voltou ao normal, a falsa sensação perigosa que essa mensagem pode passar”, ressalta a epidemiologista.
O descompasso entre a ação e o discurso vai levar a cabo mais algumas centenas de vidas nesse início de junho, mortes que poderiam ser evitadas. “Quando colocamos a vida em primeiro lugar, nossa missão é antever o caos e não aguardar por ele”, afirma Ethel.
‘Votos valem mais do que vidas no ES’
Em consonância com as advertências científicas e com a ética humanística, com a qual um governo dito socialista deveria dialogar de forma mais próxima, o Padre Kelder Brandão publicou uma nota em suas redes sociais na última sexta-feira (29), sob impacto da notícia, publicada em Século Diário, de que o Rt de 1,7 leva o Estado a alcançar 1,3 mil mortes em quinze dias.
“É lamentável, triste e apavorante que no momento em que as estimativas de mortes causadas pela Covid-19 disparam no Estado, apontando para um número superior a 1.300 mortes até meado de junho, o governo estadual afrouxa as medidas de isolamento social, sucumbindo a pressão de empresários e grupos de extrema direita que vociferam contra o isolamento social, demonstrando que não possuem nenhum respeito ou sensibilidade diante da dor e das mortes causadas pela pandemia, justamente quando a família do governador se encontra acometida pela infecção”, afirmou.
“Fico me perguntando quando foi que a razão cedeu à sandice e a ignorância tomou o lugar do conhecimento. (…) Será que o sofrimento de milhares de pessoas que não têm um lugar adequado para fazer o isolamento necessário no caso de contaminação não faz diferença para os gestores públicos?”, questionou.
“É inadmissível que eles não saibam as consequências das ações que estão tomando. Se não sabem, eu digo: mais pessoas contaminadas e mais mortes. É simples. Como também é simples constatar que votos valem mais do que vidas no Espírito Santo”, bradou.
“Tenho rezado todos os dias pela recuperação do governador e dos seus familiares, bem como de todas as pessoas infectadas no Estado, pedindo a Deus que conforte as famílias enlutadas. Mas eu lembro aos gestores públicos que mortos não votam, mas seus familiares sim, e como padre advirto aos gestores católicos: não adianta nada ganhar eleições explorando a desgraça dos pobres e perder a vida eterna”, disse.
‘Nota A é fetiche?’
Para o professor e pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) Rodrigo Medeiros, a submissão do governo do Estado aos interesses das elites econômicas é evidente.
“O Espírito Santo possui renúncias fiscais estaduais que demandam uma avaliação criteriosa e transparente dos seus benefícios para a sociedade, e elevada sonegação fiscal anual. Estamos falando de um volume de aproximadamente R$ 6 bilhões por ano que estão fora do orçamento estadual. O governo estadual conta com uma expressiva margem para a contratação de operações de crédito. Sua dívida consolidada líquida é de aproximadamente 15%, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, em relação à receita consolidada líquida, muito abaixo do limite de 200%. Nesse sentido, é preciso questionar: como a nota A em gestão fiscal na Secretaria do Tesouro Nacional está beneficiando efetivamente a população capixaba em um momento de crise profunda?”, provoca. “A Nota A [conquistada desde 2012 pelo ES junto ao Tesouro Nacional] virou um fetiche?”, ironiza.
“Segundo apontam os especialistas que acompanham diariamente a evolução da pandemia, relaxar medidas de isolamento social prematuramente é a receita para mais problemas nos sistemas de saúde e na economia”, explana Rodrigo, citando falas de Paul Romer e Paul Krugman, ambos laureados com o Prêmio do Banco Real Sueco de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, colhidas na imprensa internacional: “a única forma de recuperar a economia é controlando o vírus”, dita por Romer, e “a abertura prematura [das atividades econômicas] pode resultar em centenas de milhares de mortes e gerar resultados adversos mesmo em termos econômicos, já que uma segunda onda de infecções poderia nos forçar a voltar ao confinamento”, de Krugman.
É fato, reconhece o professor, que a resposta do governo federal à pandemia tem sido desarticulada e que “a inércia de ações federais no campo da garantia da renda mínima, por exemplo, afeta o jogo das pressões pela flexibilização prematura das políticas de isolamento social nas unidades federativas, afinal, as margens da gestão fiscal são mais estreitas nas unidades federativas”.
A situação já foi abordada pelo secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, em coletiva de imprensa no dia 30 de abril, quando disse que “as questões do Covid ultrapassam o campo da saúde (…) e exige medidas neokeynesianas radicais”, afirmou, citando “grande investimento em obras de infraestrutura, proteger a classe trabalhadora pessoas humildades e pobres, periferias, vulneráveis”.
“Sem uma política que eu chamo de neokeynesiana radical por parte da União, não é possível que somente um setor de economia seja sobre ele delegada a conta do distanciamento. Por isso o esforço nosso de desenvolver metodologias que consigam distribuir o conjunto de medidas que possam repercutir num distanciamento social, avaliando a vulnerabilidade e o risco de cada território com medidas especificas para cada situação que for diagnosticada e estabelecida”, argumentou, na ocasião.
Apesar de todo esse cenário econômico desfavorável bem antes da Covid-19 e da limitação de atuação econômica das unidades federativas, frente aos desmandos do governo federal, Rodrigo Medeiros enxerga uma capacidade de atuação ainda latente por parte do governo do Estado. “O Espírito Santo, mesmo sendo detentor de uma nota A em gestão fiscal na Secretaria do Tesouro Nacional, encontrava-se com os seus serviços públicos estaduais e municipais deteriorados. Seria interessante refletirmos, neste momento, sobre como a sustentação dessa nota A se reverte efetivamente em benefício da população capixaba”, provoca.
Painel Covid-19
O Painel Covid-19 desse sábado (30) confirmou mais 276 casos e 14 óbitos pelo novo coronavírus, totalizando 13.437 e 583, respectivamente, além de taxa de letalidade média estadual de 4,34%.
Os números do Painel são subestimados, pois a subnotificação no Estado, segundo especialistas, é de cerca de um caso notificado para casa 12 de fato existentes. A primeira etapa do inquérito sorológico indicou que apenas 2,1% da população, até então, já entrou em contato com o vírus, o que equivale a pouco mais de 80 mil pessoas. A segunda fase, cujos dados devem ser divulgados nesta segunda-feira (1), devem indicar que o percentual já saltou, em quinze dias, para próximo de 6%.