O maravilhoso mundos dos fermentados naturais – ou selvagens, como alguns preferem chamar – cresce vigorosamente no Espírito Santo, com experiências domésticas, comerciais e compartilhadas.
Fermento de Cristo
Água: um litro e seiscentos; farinha de trigo: quatro colheres; açúcar: quatro colheres; e sal: uma colher. Vida: abundante; trabalho: bastante; alegria: bastante; e dificuldades: um pouco. “A mágica é: você trabalha, você tem alegrias, dificuldades, Deus resolve”, poetiza Rose Grapentin, artesã e produtora caseira de pães com fermento de Cristo há dezoito anos, desde que ganhou sua primeira “muda” de uma vizinha, no Caparaó capixaba.
A bela alegoria, associando ingredientes a valores do dia a dia, verdadeira sentença sobre o segredo do bem viver, foi sendo por ela intuída ao longo do tempo, à medida que imergia no universo da fermentação natural. “Respeito e humildade pra aceitar que não é você que faz tudo”, ensina.
A receita acima rende 1,8 litro de fermento de Cristo. Um terço deve ser usado; outro terço, guardado; e o restante, doado. “São princípios da prosperidade. Alimentar o outro te dá segurança”, testemunha.
Autonomia
Intuições sobre a vida e o bem viver são uma constante entre as pessoas que se dedicam às fermentações naturais. Um prazer que brota de uma nova relação com o tempo, com o invisível, com o próprio corpo, com a interação com o outro.
“É um hábito barato, ancestral e democrático, nos reconecta com o cuidado cotidiano com o alimento, com o tempo, com os ciclos sagrados da natureza”, depõe Ligia Sancio, culinarista especialista em fermentações selvagens. Em seu itinerante Santosha Quintal-Café, serve pães, kefir e conservas que ela mesma produz em seu laboratório de experimentações criativas, além de ministrar oficina práticas e cursos e atuar como personal chef. “Estou muito feliz trabalhando com isso”, afirma.
“Passar receitas, descobrir novas técnicas e modos de preparo, ajudar a solucionar dificuldades, doação e trocas de mudas. É uma retomada da autonomia sobre o que comemos e, logo, com nossa saúde. Está acontecendo há alguns anos uma retomada no ato de fermentar alimentos de forma caseira, como sempre foi”, narra.
Sim, porque a geladeira, relembra, firmou-se como item indispensável nas residências, das mais humildes às mais abastadas, há pouco mais de 50 anos. Somente pouco mais de meio século. Antes disso, conta, sabemos dos relatos dos nossos avós, de fazer geleias, queijos, colocar carne na lata com a gordura do próprio animal, de defumar e salgar e prensar em vidros bem fechados os legumes excedentes..
O hábito de fermentar, opina, traz consigo uma autonomia alimentar que foi se perdendo com a crescente industrialização. “Tudo ficou perigoso”, critica Lígia, referindo-se ao pavor das bactérias, à mania de pasteurização de tudo. O problema é que, ao pasteurizar, mata-se todas as bactérias, não só as patógenas, mas também as benéficas para a saúde, tão maravilhosamente nascidas das fermentações naturais.
Os refrigerantes e sodas, deduz, surgiram da necessidade de criar bebidas que tivessem gosto e aparência de fermentados, mas que não fossem fermentados, atendendo à onda pasteurizadora em voga há mais de cem anos.
Lamentavelmente, sem as bactérias, fungos e leveduras das fermentações naturais, essas bebidas são repletas de corantes, acidulantes, espessantes e outros químicos nocivos à saúde, além de gás carbônico artificial e muito açúcar refinado.
De Hollywood para o mundo
O fascínio por bebidas probióticos nunca morreu, portanto, mesmo que durante décadas, essa sede tenha sido falsamente saciada pelos refrigerantes e sodas. Felizmente, há pelo menos dez anos, as autênticas voltaram a ocupar seu espaço. A recente moda das Kombuchas surgiu em Hollywood, tendo estrelas como Madonna e Gwyneth Paltrow como garotas-propaganda.
Iniciados nas kombuchas pelos neohippies californianos e suas experimentações caseiras, ícones da cultura pop estadunidense passaram a divulgar seus agradável sabor e benefícios para a saúde e, em pouco tempo, as prateleiras dos mercados estavam repletas de variadas marcas comerciais da bebida.
Da costa pacífica dos Estados Unidos para o mundo, foi um pulo e, até hoje, o show business tem um caso de amor com as kombuchas, como pôde ser observado no último Lollapalooza no Brasil e no Rock in Rio, quando os músicos todos exigiram a bebida em seus camarins.
No Brasil, a maioria dos relatos remonta a meados da década de 2010 como o início dos contatos com a Kombucha. É o caso do capixaba Jovan Demoner, brewer master da kombucha Viva o Dia, que produz na cozinha profissional que montou em sua casa, na zona norte da Capital.
“Levar probióticos pras pessoas é um bem enorme que se faz. A gente sabe que cada garrafinha vai povoar a microbiota intestinal e vai ter reflexos na imunidade, absorção de nutrientes, desintoxicação, purificação do sangue, além de ser um antioxidante excelente e equilibrador do pH intestinal e sanguíneo”, descreve.
'Trabalho'
O prazer em ser um operário dessa arte é unanimidade. Também no Caparaó capixaba, a jovem Izabella Victória Moraes extasia-se com o novo ofício. “Quando alguém me pede para falar com o que eu ‘trabalho’ eu tenho até uma certa dificuldade em responder. Pois quando penso em trabalho, me vem à cabeça aqueles ofícios chatos em que as pessoas não são muito satisfeitas com o que fazem. E para mim, produzir a Kombucha Bella Vida é pura alegria. Lógico que tem uns dias que são mais difíceis que os outros, mas em geral, estou muito satisfeita em trabalhar com esse universo da fermentação”, diz.
“Trabalhar com os alimentos fermentados é lidar com uma série de sutilezas bonitas; é trabalhar harmonicamente com a vida de incontáveis micro-organismos; é trabalhar com o tempo e com a paciência, afinal, tem lotes de kombucha que demoram 20 dias para ficarem prontos; é trabalhar com a criatividade pois são infinitas possibilidades de sabores, cores, texturas (e amores); e é trabalhar levando benefícios às pessoas”, deslumbra-se.
Milenares e atuais
A médica reumatologista Lidia Balarini, apaixonada pelas fermentações naturais, afirma que ainda não há evidências científicas na literatura médica para usar a kombucha como tratamento de doenças isoladamente. Mas hoje, já se sabe que a microbiota intestinal, ou flora intestinal, “é só uma coleção de bactérias, mas impacta diretamente na nossa saúde. E os probióticos ajudam a repor essas bactérias benéficas”, explica.
Muitas vezes, conta Lidia, a intolerância a glúten é na verdade uma reação do organismo a farinha de trigo de baixa qualidade, ou de métodos industriais de produção do pão. Com a fermentação natural – possível com uma farinha de trigo de melhor qualidade, pura, de grãos não-transgênicos –, o índice glicêmico do pão diminui, explica Lidia, ele fica mais leve, permite melhor digestão.
Jovan acredita que as descobertas médico-científicas da Ortomolecular sejam as grandes responsáveis pela recente explosão de interesse pelas kombuchas e outros probióticos em todo o mundo.
A Ortomolecular, ao centrar seus estudos no intestino, descobriu sua grande quantidade de neurônios e circulação sanguínea, maiores que as do cérebro, classificando esse órgão, ainda tão relegado pela medicina ocidental convencional (e pasteurizada), como “segundo cérebro” ou “cérebro desconhecido”, citando nomes dados a dois dos mais importantes livros sobre a Ortomolecular publicados no Brasil.
O produtor da Viva o Dia ressalta que todo fermentando possui probióticos. Desde os milenares shoyo, missô e kombucha, do Oriente – os soldados de Gengis Khan, na China medieval, carregavam seus chás fermentados nas viagens, para se curarem de toda sorte de males advindos das batalhas. “Os fermentados são importantíssimos pra recomposição da microbiota intestinal, ou flora intestinal, e para a purificação do sangue”, explica o mestre kombucheiro.
As cervejas também são milenares, lembra, produzidas inicialmente pelos monges. Hoje, principalmente por conta da “moda” dos fermentados naturais, é cada vez menos difícil encontrar cervejas e também vinhos e gegibeers artesanais que preservem os probióticos da fermentação natural. “Depende do processo de preparação”, explica Jovan, orientando que é preciso saber se não há pasteurização ou adição de substâncias que matem os probióticos.
Um exemplo capixaba de bebida alcóolica “viva” é a Rutz Taile, produzida por Guido Botti Zanello e Iris Karry, no Caparaó Capixaba, a partir de fermentação natural com levedura de champanhe. “Precisa manter refrigerada”, orienta Guido, para prevenir que os micro-organismos se proliferem demais na garrafa e a explodam depois de alguns dias.
Scooby
Mas afinal, o que são as bebidas probióticas ou que preservam os probióticos? O que são probióticos? Em que consiste a fermentação natural ou selvagem?
A fermentação natural é um processo em que microrganismos se alimentam de açúcares e transformam esses açúcares em proteínas em outros nutrientes, como enzimas, aminoácidos, ácidos orgânicos. “Nesse processo de transformação, os microrganismos são os probióticos, atuando naquele meio. E os prebióticos são o alimento desses micro-organismos”, explica Jovan.
Os alimentos e bebidas probióticas, por sua vez, são aqueles ricos em micro-organismos que produzem efeitos benéficos para a microbiota intestinal, melhorando a imunidade e tantos outros aspectos da saúde que emergem de um intestino saudável.
No caso da kombucha, o nome “técnico” dos micro-organismos é Scooby, do inglês symbiotic colony of bacteria and yeast, ou, “colônia simbiótica de bactérias e leveduras”.
A produção artesanal de kombucha, enfatiza, é uma forma de “dedicação e reverência a esses microrganismos que estão ali”. “Não se pode explorá-los, é uma simbiose: nós precisamos deles e eles precisam de um meio para sobreviver, meio que nós preparamos pra eles”.
Tempo de prateleira
O cuidado ao escolher a bebida de melhor qualidade é muito importante, pois o processo industrial, novamente, quer iludir o consumidor com falsos probióticos.
“Nos Estados Unidos, as grandes indústrias produzem dois mil litros de Kombucha por dia. Essas não têm a mesma quantidade de probióticos que as artesanais. Muitas indústrias utilizam processos industriais que limitam a quantidade e qualidade dos microrganismos probióticos”, alerta Jovan, citando o chamado ”tempo de prateleira”, o mesmo que impede a Rutz Taile de fazer grandes deslocamentos, pois a refrigeração encarece o transporte e a ausência dessa necessidade implicaria em inserir aditivos que reduziriam os probióticos da bebida. A indústria em geral quer o maior “tempo de prateleira” possível, diz Jovan. Por isso, diminui a quantidade de probióticos. “Quanto mais probióticos, mais álcool, mais gás carbônico, fica inviável”, diz.
Já existem algumas marcas no Brasil se autodenominando Kombucha, porém, com uma quantidade irrisória de probióticos, limitados pela pasteurização feita para atender ao “tempo de prateleira”. Para evitar engodos como esses, vários kombucheiros de diversos estados se reuniram em uma Associação Brasileira de Kombucha (ABKom), para garantir que as bebidas que levem o nome Kombucha sejam de fato kombuchas, bebidas probióticas.
“A associação está contribuindo com os ministérios da saúde e agricultura a definir os procedimentos e normas de produção da Kombucha no Brasil”, explica Jovan, ressaltando que está aberta à entrada de novos associados.
Comunidades de troca
Uma outra vertente da proteção ao direito de consumir probióticos de qualidade, além da regulamentação oficial, é fortalecer as comunidades de troca.
A reumatologista Lidia participa de várias: kombucha, kefir, pão, conservas. As discussões acontecem nas redes sociais e os encontros presenciais são quinzenais ou mensais, quando há farta troca de receitas, dicas e preparos coletivos de alimentos.
“É um hobby”, declara a médica. “Observar os processos de fermentação, como acontecem de forma orgânica. Quando aprende a fazer as conservas, não deixa mais estragar as verduras, não tem desperdício. É sustentável e é bonito ver a coisa acontecer de forma artesanal. Guardar um alimento por mais tempo, fazer uma bebida gasosa saudável, completa.
O mais gostoso, frisa, é a socialização. “Tudo isso é doado. Nessas trocas, de dar mudas, receber mudas, ensinar como fazer, eu conheci bastante gente”, relata. “Entre todos os ganhos, além da saúde e da alegria de fazer, conhecer pessoas foi um dos melhores”, afirma.