“Vai explodir em uma semana o número de óbitos no Espírito Santo com a reabertura de shoppings. Aumento de 150% em uma semana, por falta de atendimento. As pessoas vão morrer em casa, como aconteceu em Guayaquil, no Equador, e em Nova York”. O alerta é do professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Domingos Alves, integrante do Grupo Covid-19 Brasil, formado por cientistas independentes, oriundos de diversas instituições de pesquisa brasileiras, dedicados, voluntariamente, a avaliar a evolução da Covid-19 por meio da ciência de dados e contribuir com os governos e a população no enfrentamento da crise.
Explosão semelhante do número de casos e, consequentemente, das internações hospitalares e mortes, já aconteceu no Brasil na cidade de Blumenau, em Santa Catarina, Sul do país, quando o comércio foi reaberto no final de abril. Ocorre que, tomar a mesma desastrada medida um mês depois provocará, em todos os municípios que a adotarem, danos muito maiores, devido principalmente ao crescimento da taxa de ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
No Espírito Santo, essa taxa vem variando acima de 80% desde a semana passada e, na Grande Vitória, circulando em torno dos 90%, muito maior que no início de maio. Os dados dessa terça-feira (2) indicam percentuais de 82,43% e 89,40%, respectivamente. E o Painel Covid desta quarta-feira (3) mostrou a confirmação de mais 970 casos e 34 óbitos pela doença, totalizando 16.121 e 698, respectivamente.
O inquérito sorológico, no entanto, cujos resultados da segunda etapa foram divulgados nessa segunda-feira (1), mostraram que o número de infectados no Estado, no final de maio, foi de 206 mil pessoas, um aumento de 141% em quinze dias, sendo que, no interior, o crescimento foi de 1.300%. A subnotificação, assim, é da ordem de 14 infectados reais para cada um confirmado no Painel.
“O que mais me chama atenção é que os governadores estão se aproveitando de falas anteriores, relacionadas a grupos de cientistas, pra dizer que as medidas estão sendo tomadas usado a ciência. Isso é mentira. Não tem nenhuma evidência pra nenhum estado nem município fazer qualquer abertura de comércio nesse momento”, enfatiza Domingos Alves.
“A prerrogativa de recuperar a economia é outra falácia pra população”, denuncia, comparando as experiências de dois países europeus: Suécia e Dinamarca. O primeiro apostou na flexibilização econômica precoce, perdendo vidas em quantidade proporcionalmente muito maior e não conseguiu atingir uma economia melhor depois da crise, enfrentando, agora, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19.
O diálogo dos governadores e prefeitos com a população, afirma o cientista, “não pode dar a impressão de que está tudo sob controle”. Um discurso honesto por parte dos gestores, afirma, deveria ser: “estou assumindo a responsabilidade de mudar o foco da saúde pública pra saúde econômica e eu vou assumir a responsabilidade do que acontecer nos próximos dez dias no meu estado e no meu município”, diz. “A catástrofe tem hora marcada pra acontecer”, adverte Domingos. “Eu desafio o governador do Espírito Santo a mostrar um plano de recuperação econômica com reabertura num cenário de epidemia aguda. Não consegue”, afirma.
“Não existe evidência nenhuma de que houve recuperação econômica em lugares onde houve reabertura do comércio com números crescentes de infectados e mortos. Há, sim, evidências contrárias, como em Milão, na Itália, e Nova Iorque, nos Estados Unidos. O próprio FMI [Fundo Monetário Internacional] diz isso”, avisa.
“Qual a motivação para isso? Um grande acordo com Bolsonaro?”, questiona, ao mencionar que as decisões por reaberturas precoces dos comércios têm acontecido nos últimos dias em vários estados brasileiros, em torno do fechamento do acordo de auxílio financeiro por parte do governo federal, sob condições publicamente contestadas por vários estados. Mas, e o que não foi divulgado?
“Anote hoje o número de óbitos no Espírito Santo e a taxa de ocupação de leitos de UTI. Daqui a dez dias, o governador vai vir a público e assumir o dano causado. Vai ser gigante. Que ele tenha a hombridade de vir a público e dizer que não conseguiu controlar a pandemia”, desafia.
Para o pesquisador, há uma falta de preparo e de gestão em todos os níveis. O próprio inquérito sorológico, aponta, feito com testes rápidos, “não controla a pandemia, apenas mostra que o número [real de infectados] é muito maior [que os notificados]”.
“O que tem que fazer é teste PCR e colocar os contagiados em isolamento. Do contrário não consegue controlar. É ampliando as medidas de contenção de interação de pessoas e não ficar nessa média nacional de 50%. Isso é enxugar gelo com flanela”, critica.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), destaca, normatizou que é preciso “estabelecer um pacto com a população”. “Não é dizer ‘fique em casa’. Tem que levar [a pessoa confirmada com a infecção, após teste PCR] pra um hotel. Eu digo mais ainda: hotel cinco estrelas com café da manhã, almoço e jantar. Durante quinze dias, pra ter certeza que não está transmitindo mais. Isso é caro? É infinitamente mais barato fazer isso do que manter as pessoas no hospital”, compara, mesmo tendo como base o valor de R$ 2,5 mil a diária de UTI. No Espírito Santo, o secretário de Estado da Saúde, Nesio Fernandes, afirma que o valor da diária é de R$ 1,6 mil.
“Tem que investir”, enfatiza. “Na ausência do governo federal, como os governos dos estados irão investir? Na saúde da população ou das grandes empresas? Se todos os governadores no Brasil fizerem o seu trabalho adequadamente, devem pressionar o governo federal para liberar mais recursos”, orienta, lembrando que, do pouco anunciado pela União, apenas 7% já foi liberado em forma de auxílio emergencial.
“O micro e pequeno empresário deveria ter tido apoio logístico desde o início”, exalta, destacando que o Brasil, segundo números do Grupo Covid-19, é o único país que, no 50º dia da pandemia, registra aceleração do número de contaminações. Todos os demais, nesse momento da crise, passaram a ter, no mínimo, redução da velocidade da contaminação, ou até inversão da curva. O motivo? A manutenção da adesão média de 50% ao isolamento social e a falta de apoio do governo federal aos estados, para efetivo controle da pandemia.
Responsabilidade é do Estado
Integrante do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE) – formados por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) – a epidemiologista e professora da Ufes Ethel Maciel, há muito vem mostrando a falta de critérios científicos para a adoção de medidas de flexibilização econômica tomadas em maio.
O Núcleo, que assessora tecnicamente a Sala de Situação de Emergência Pública do governo do Estado, tem publicado notas técnicas e se manifestado contrariamente às medidas. Para Ethel, outra postura perigosa é a transferência de responsabilidade pelo isolamento social que o governo do Estado tem feito para a população.
“Essa transferência de responsabilidade tem que ser evitada, porque não depende só das pessoas. Algumas têm a opção, mas a maioria não”, assevera. “Estamos com uma dificuldade enorme, correndo contra o tempo para diminuir a contaminação, o adoecimento e as morte. Não adianta aumentar leitos”, afirma.
A Matriz de Risco, que oficialmente tem orientado a tomada de decisões pelo governo, a partir das atualizações semanais do Mapa de Gestão de Risco, tem quatro indicadores. Desses, apenas o percentual de pessoas com mais de 60 anos em cada municípios é estável e os três variam de acordo com a atuação direta do Estado no controle da crise: incidência de contaminados (número de casos confirmados em relação à população total no estado, município ou região); isolamento social (medidos por empresas de celular); e ocupação de leitos hospitalares.
“Muita gente só pode se isolar se tiver apoio do Estado. O número de leitos depende da gestão pública e a incidência depende da ação da saúde nos municípios e hospitais, na busca ativa de casos, na massificação dos testes e no isolamento das pessoas contaminadas”, explana.
“Se puder haver algum legado positivo da pandemia, que seja a transformação do SUS [Sistema Único de Saúde] num sistema público de verdade, com gestão pública e não por OSs [Organizações Sociais de Saúde]. E o estabelecimento de uma renda mínima para os mais vulneráveis. É uma chance de rever desigualdades e injustiças estruturais, mas o que o Estado faz é só aumentar o número de leitos. Se o plano for esse, estamos perdidos”, reforça.