Danielle Lima é umas das usuárias do serviço que está ameaçado de desmonte pelo governo Bolsonaro
“Se eu fechar o olho, me lembro até hoje quando subi a rampa do Adauto Botelho numa cadeira de rodas, amarrada, sedada. E eu tinha uma marca de uma botina no rosto. Essa marca ficou no meu rosto por uma semana”. Assim Danielle Cristina Lima lembra de sua primeira internação num manicômio, depois de um surto em plena Avenida Expedito Garcia, a mais movimentada de Cariacica, e um segundo surto no Hospital São Lucas, em Vitória. Sofria de depressão, doença que havia acreditado antes que era besteira, mas que acabou a levando aos momentos mais difíceis de sua vida.
Descreve como no antigo hospital teve sua liberdade e dignidade destruídas e como se acostumou a isso. “Não tive a pretensão de ser tratada, de ser curada. Sentia que estava enterrada. Que era o último prego do meu caixão”. Mas sua vida daria uma segunda virada, quando foi indicada há nove anos para sair da internação e frequentar o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Cidade, localizado em Cariacica.
“Para falar do Caps, você tem que estar dentro dele. De dentro, vivenciando o Caps Cidade, você vê que a luta é diária. Todo dia quando eu acordo, tenho vontade de morrer. Todo dia antes de levantar, tenho que olhar pro céu e dizer: senhor, tenha misericórdia. Nos dias em que tenho mais vontade de morrer, eu estou aqui. Esse povo aqui empurra a gente pra viver. Aqui você acha alguém que te escuta, que escuta sua lamúria, alguém que te incentiva. No Caps aprendi que sou gente, sou Danielle, não sou a louca que foi internada um dia”.
Danielle fala com energia e olhando nos olhos, enquanto eu tento disfarçar por detrás de meus óculos que os meus olhos estão úmidos. “Aqui eu aprendi que tenho palavra, sim, que vou brigar, sim, que eu não vou abaixar a cabeça. Eu estou viva, sim, eu posso não ter uma família presente, mas tenho amigos que lutam também junto comigo”.
Não por acaso estamos conversando. A intenção era justamente conhecer como funciona esse sistema público e gratuito de cuidado com a saúde mental, já que uma das últimas polêmicas em torno do Governo Federal gira em torno da intenção de uma contrarreforma psiquiátrica, no qual o Ministério da Saúde tem como principal aliado algumas entidades médicas e psiquiátricas. A reforma ao qual o Governo Bolsonaro tenta se opor tem como marco uma lei de 2001, que impulsiona a eliminação gradual dos manicômios, que excluem o paciente do convívio social.
Os Caps buscam fazer o oposto. Aproximam da comunidade, da família, da cidade. Ligados à Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do Sistema Único de Saúde (SUS), os Caps estão capilarizados por todo país e possuem equipe multidisciplinar. No caso do Caps Cidade, localizado em Jardim América, logo embaixo da Segunda Ponte, dentro do CRE Metropolitano, há profissionais de psicologia, medicina, enfermagem, farmácia, assistência social, terapia ocupacional, além de contabilidade, serviços gerais e vigilância.
“Eles falam que os Caps não valorizam o profissional médico psiquiatra. Não é verdade. Dentro da equipe multiprofissional do Caps, está previsto o médico psiquiatra. A gente não nega que ele tem um papel também fundamental. Mas o foco não é só no psiquiátrico. Os usuários precisam de um corpo completo de profissionais, porque quando a gente fala do sofrimento psíquico, de transtorno mental, a gente não fala só de fator biológico, a gente fala de fator psicossocial”, diz a psicóloga Adriana Zuppi, atual coordenadora do Caps Cidade.
Existem vários tipos de Caps, mais ou menos especializados, o que depende também do tamanho do município onde está localizado. No Caps Cidade, há três consultórios para atendimentos médicos ou psicológicos, sala de enfermagem, sala coletiva, sala de descanso, sala de oficinas e refeitório. O local fica aberto das 7h às 17h, e os usuários do serviço o frequentam conforme avaliação, podendo estar no local diariamente, algumas vezes por semana, ou de forma mais esporádica para consultas, conforme a necessidade.
“A gente está falando de pessoas que por conta da crise psíquica passaram a ter um mundo à parte, uma realidade diferente, que muitas vezes têm dificuldades de estabelecer laços afetivos num momento de crise. Eles perdem muito isso. A gente tem o papel de contribuir para o resgate desses laços sociais com as oficinas. É ali que eles se encontram com o outro, criam novos laços, estabelecem comunicação, interação, uma grande rede de apoio e suporte”, explica Adriana.
Mas para além da estrutura de salas e outros cômodos, no Caps Cidade um dos lugares mais importantes são os corredores, conta a psicóloga e gestora. A circulação atualmente está reduzida por conta da pandemia, mas é ali que acontecem vários encontros e trocas de informações, já que usuários são bastante livres e transitam entre os espaços. O corredor virou também uma verdadeira galeria de arte, com a exposição de vários quadros pintados no pequeno ateliê e nas oficinas realizadas.
Os profissionais parecem atentos e sempre observam e comentam entre si suas percepções, caso algum usuário não aparente estar bem naquele dia. “A gente chega aqui e a Ana da farmácia, pelo nosso bom dia e agora pelo olhar, já sabe se a gente tá bem ou tá mal. Aqui, se você grita, sempre tem alguém que senta com você e pergunta: ‘o que tá acontecendo? Posso te ajudar em alguma coisa? No Caps não tem julgamento, tem sim ‘puxão de orelha’, tem hora que é necessário, mas ninguém te julga”, relata Danielle, que em nossa conversa constantemente compara o tratamento dentro do centro com o que recebe fora dali caso tenha algum tipo de crise.
Há ainda dentro da estrutura do Caps Cidade uma sala de costura e um bazar, que são geridos pelos próprios usuários do serviço, como forma de conseguir fontes de renda, assim como fazem com a venda de quadros. A autonomia e o protagonismo dos usuários são pontos fundamentais do serviço. Não há paciente, palavra que remete à passividade. Mensalmente, há uma assembleia que reúne os usuários, seus familiares e os funcionários para debaterem as questões referentes ao serviço da unidade.
José Augusto e Bernadeth da Vitória estão entre os familiares que sempre estão presentes no acompanhamento. O comportamento do filho, que a mãe chama carinhosamente de Juninho, assustava desde cedo os pais. Um primeiro surto aconteceu em 1997 e ele chegou a ser internado dois anos depois. Passou a viver praticamente sem sair de casa, só comendo e dormindo, enquanto os pais escondiam todos objetos cortantes e viviam com medo de sofrer ataques violentos do filho. Assim como para Danielle, o Caps foi um ponto de virada para Juninho e também para seus pais.
Foi preciso a ajuda de sete familiares para tirar Juninho da cama em fevereiro de 2013 e levá-lo até o CRE Metropolitano. Mas a partir daí, a mãe diz que tudo começou a mudar. “Hoje eu tenho prazer em estar com meu filho em casa, antes era um desgosto”, afirma Bernadeth sobre o filho com 43 anos recém-cumpridos. Viram melhoras na sociabilidade de Juninho, com quem hoje se sentem seguros não só em casa, mas também para passear pelas ruas em sua companhia.
O Capes Cidade também é um lugar de acolhimento para Leomar Silva, que passa por acompanhamento psicossocial desde 1999, na primeira sede do Caps Cidade, que funcionou no edifício do Antigo IAPI, na Praça Costa Pereira, em Vitória, antes de ser transferido a Cariacica e antes mesmo do serviço ter este nome. No Caps ele se sente bem e preza pelo cuidado dos demais, oferecendo um cafezinho e ajudando também na distribuição das marmitas para o almoço. “Eu gosto de ocupar a mente com alguma coisa, alguma coisa que satisfaz, é terapêutico”, afirma. “O Caps é acolhedor. Eu falo porque eu passei por várias situações críticas e hoje, graças a Deus, estou me recuperando. Mas não posso abandonar ainda, porque eu preciso”.
“Ouvir os próprios usuários para mim é a melhor certeza de que esse serviço funciona. A gente diminuiu o número de internações. O Caps tem o papel de fazer o manejo de crise. Então a gente evita, sim, que vários desses usuários fiquem internados”, analisa Adriana Zoppi.
Sobre a proposta da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) que ganha eco no Ministério da Saúde para aumentar os leitos e ambulatórios, trazendo um foco novamente num sistema médico e hospitalar para o tratamento de saúde mental, comento com Danielle que hoje provavelmente se buscaria um sistema mais “humanizado” que o que ela vivenciou no antigo Adauto Botelho. A usuária do Capes responde na lata, com uma metáfora implacável: “Seria como fazer uma pintura bonita numa parede podre”.
Uma das funcionárias do Caps Cidade me mostra a foto de um postal enviado por uma pessoa que fez tratamento do Caps, cujas letras grandes e cursivas em caneta preta dizem: “Obrigado por nos fazer livres”.