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O capitalismo é uma fábrica de doenças mentais, avalia presidente da SBP no ES

Psicanalista Aloísio Silva considera necessário um check up anual para tratar “as neuroses que todos temos”

Aloísio Silva é presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise no Espírito Santo (SBP-ES). Foto: Divulgação

Para além do conhecido Setembro Amarelo, dedicado à prevenção do suicídio, janeiro é outro mês a ancorar uma campanha nacional voltada à sanidade mental. Iniciado em 2014 por profissionais da área de Psicologia de Minas Gerais, o Janeiro Branco se dedica à saúde mental de forma ampla e, neste 2024, acontece pela primeira após a aprovação da Lei federal nº 14.556, que oficializa a iniciativa.

Irradiado a partir do Instituto Janeiro Branco, a campanha conta, no território capixaba, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), que alerta: “o Brasil tem o terceiro pior índice de saúde mental do mundo, segundo o último relatório anual de Estado Mental do Mundo, que inclui 64 países. No Espírito Santo estima-se, com base na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que 25% da população convive com algum tipo de transtorno mental, ou seja, cerca de 950 mil pessoas”.

A pasta também ressalta que, “segundo a psiquiatria, os cuidados em saúde mental requerem três grandes pontos de atenção: o fornecimento do tratamento para aqueles que já apresentam sintomas, a psicoeducação para os que ainda não têm agravos e o combate ao estigma relacionado à saúde mental”.

Para a coordenadora da residência médica de psiquiatria do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação (iCEPI), Maria Amélia Pedrosa, “saúde não é só ausência de doença. Um dos grandes pilares da saúde é promovê-la, gerando mudanças nos hábitos do dia a dia, como a garantia da segurança alimentar, a prática de exercícios físicos, boa qualidade de sono, estabelecer vínculos sociais e ter uma rede de apoio. Ou seja, a integralidade do cuidado”.

Essa noção ampliada das condições mínimas necessárias para alcançar e manter saúde mental é compartilhada pelo presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise no Estado (SBP/ES), Aloisio Silva. Mestre em Educação pelo Instituto Pedagógico Latino Americano e Caribenho (Iplac) e em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Aloísio Silva chama atenção para as dificuldades que boa parte da população brasileira tem para atender a esses requisitos, vivendo em um país com tamanha desigualdade social e violência estatal cotidiana contra os mais vulnerabilizados, decorrente do racismo e do machismo estrutural – características que intensificam o que há de pior no capitalismo, sistema que, em sua visão, é raiz principal das doenças mentais que afetam a humanidade.

Manifestação realizada em Vitória pelo Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial ES

Psicose, perversidade e neurose

“Quando se fala em saúde mental, a maioria das pessoas lembra logo do psicótico, aquele que vive a realidade do seu inconsciente, perde diálogo com o mundo objetivo e as demais pessoas e se isola no seu próprio mundo. Mas existem também os perversos, que impõem a sua própria realidade ao mundo externo, e os neuróticos, que são a maioria de nós. Quem não é psicótico ou perverso, é neurótico”, explica, utilizando uma teoria amplamente consolidada na Psicanálise que aborda os três perfis básicos que classificam a estrutura mental dos habitantes humanos do planeta Terra na atualidade.

Neurose, prossegue, “é o conflito entre a sua subjetividade e realidade externa”. Quando esse conflito não se torna psicose (fuga radical da realidade) ou perversidade (imposição da sua própria subjetividade aos demais), ocorre a neurose, ou as neuroses, que todos administramos cotidianamente, com maior ou menor intensidade e variedade. Conflitos, afirma, que estão intimamente ligados à opressão do capital sobre a psique humana

A Revolução Industrial, fato histórico já amplamente considerado como marco temporal para medir o crescimento da sobrecarga de gás carbônico lançado pela humanidade, responsável pela crise climática cada vez mais grave, deflagrou também uma ofensiva igualmente predatória contra a natureza humana, obrigando a classe trabalhadora – maioria absoluta da humanidade – a suprimir suas necessidades básicas de saúde física e mental para atender aos padrões desumanos de produtividade e competitividade.

“A estrutura capitalista é uma fábrica de doenças mentais”, afirma Aloísio Silva. “A cobrança por ser produtivo a baixo custo, ter que produzir, produzir, produzir…  essa proposta capitalista é uma proposta de escravidão moderna. De onde nascem as doenças mentais? Da pressão social, que gera depressão. Como fazer atividade física saindo de casa às cinco da manhã para trabalhar e chegando as oito, nove da noite? Como se alimentar bem passando o dia todo fora e com os altos custos dos restaurantes e salários tão baixos?”, exemplifica.

“Enquanto não houver melhor distribuição de renda e condições de igualdade para as pessoas negras, LGBTs, com deficiência, para as mulheres … não tem solução. O capitalismo é uma fábrica de moer almas. Não mata só o corpo, mata a alma”, reforça. Esse entendimento, pondera, foi pioneiramente exposto por Freud, o “pai da psicanálise”, em seu livro mais célebre, Mal estar na civilização. “Ele publicou durante a segunda guerra mundial, quando teve que se exilar para fugir da perseguição de Hitler. Faz uma crítica ao consumismo, essa ‘fábrica de doenças mentais'”, pontua.

Profissionais são escassos

Diante de um contexto tão desafiador há ainda o fato de que as políticas públicas voltadas para as profilaxias especificamente dedicadas a restaurar ou manter a saúde mental também são muito falhas, quando se trata de atender à maioria da população, social e economicamente menos favorecida.

“Os Caps [Centros de Atenção Psicossocial] são uma proposta excelente do governo federal, mas os estados e municípios não dão a contrapartida, não oferecem os profissionais. Quantos psiquiatras existem hoje contratados na Sesa? Quantos neurologistas? Quantos médicos? Quantos assistentes sociais? Todos têm essa falta de trabalhadores em número suficiente para dar assistência à população”, denuncia o presidente da SBP/ES.

Um dos profissionais mais escassos, sublinha, é o de psiquiatria. “Quando eu encaminho um paciente meu para psiquiatra, acabo enviando para São Paulo, porque aqui no Espírito Santo nunca tem data razoável para a consulta”, pontua. “Depois do Mais Médicos, [o presidente] Lula [PT] deve lançar em breve o Mais Especialistas, para reduzir esse problema”, diz.

Mas apesar de tamanha carência, observa Aloísio Silva, os Caps têm cumprido um papel importante. “Mesmo assim, funciona. Porque para uma família pobre, lidar com um psicótico, por exemplo, é muito difícil. Até porque o Estado é outra fábrica de doença mental para essa população”.

Violência estatal

A violência do Estado contra as maiorias minorizadas – mulheres, negros, indígenas, LGBTQUIAP+, pessoas com deficiência etc. – é um ponto ressaltado como gerador de transtornos e doenças mentais também por Fábio Bispo, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e um dos coordenadores do projeto Ocupação Psicanalítica – ES.

Encontro do Coletivo Ocupação Psicanalítica-ES em dezembro de 2023. Foto: Bele Colares Silva

“Existe uma dimensão social da saúde mental. O nosso modo de vida pode ser mais ou menos adoecedor. É preciso ter condições mínimas de sobrevivência e subsistência. O fato de viver constantemente sob ameaça, seja pela carência financeira ou pela violência urbana, por exemplo, repercute na saúde mental. E muitas vezes as pessoas vão buscar medicamentos para suportar essas ameaças. É uma assistência importante, mas não pode ser isolada de todo o resto: a redução da violência, o enfrentamento ao racismo e ao patriarcado”, pondera.

O projeto é nacional e, no Espírito Santo, tem apoio do Departamento de Psicologia da Ufes e funciona em parceria com organizações da sociedade civil no Território do Bem e outros territórios periféricos, urbanos e rurais. “A ansiedade que tantas pessoas sentem [o Brasil é o país com a maior população de ansiosos no mundo] não é só endógena, vem da pressão social, das desigualdades sociais. Principalmente as mulheres negras sofrem grande parte da opressão, porque lidam com o machismo e o racismo, com a violência contra seus corpos e contra os corpos dos jovens negros, que elas cuidam e que são alvo de muita opressão e violência do Estado”, explica.

Fábio Bispo afirma que a maioria dos casos que o projeto atende nesses territórios tem ligação direta com a violência de gênero e de Estado. “Quase todos os casos que a gente atende tem incidência de violência doméstica, no caso das mulheres, ou de violência urbana, seja pelas disputas de facções criminosas ou pelas ações policiais nas comunidades”.

Em 2023, enfatiza, “houve um aumento desses conflitos no Território do Bem e a população sentiu mais essa carência de uma política pública para atender as pessoas vítimas de violência do Estado”. Ao contrário do Rio de Janeiro, que conta com estratégicas específicas de atendimento a pessoas vítimas de violência estatal, o Espírito Santo continua ausente nessa importante política pública, pontua Fábio Bispo.

Atendimentos sociais

Nas rodas de conversa e nos atendimentos individuais realizados pelo projeto, os jovens e outros moradores dos territórios são orientados a construírem laços de afeto e solidariedade em suas comunidades, para contrapor a lógica do individualismo e competitividade típicos do capitalismo, tocando no ponto de relações sociais, um dos critérios para a saúde social apontados pela gestora do iCEPI. Também são instruídos a buscarem atendimento clínico nos equipamentos públicos parceiros do projeto, essencialmente as unidades de saúde e Caps. Há também os atendimentos na Ufes ou nos consultórios dos psicanalistas que integram o projeto.

Na SBP, psicanalistas filiados também oferecem atendimento social. Durante o Setembro Amarelo e no dia seis de maio, dia do Psicanalista, há oferta de atendimentos clínicos gratuitos. Alguns filiados também oferecem uma cota de atendimentos a preços mais baixos durante todo o ano, bem como os alunos em residência, que precisam comprovar prática de atendimentos para concluir seu curso.

“Nós da SBP temos a proposta de dar acesso. Temos psicanalistas que são ex-empregadas domésticas, ex-mecânicos, ex-pedreiros, pastores, padres, que oferecem análise gratuitamente. Além da própria escola, que também oferta gratuitamente ou a baixo custo”, afirma o presidente. “Mas o ideal é estar na política pública. Hoje o psicanalista é no serviço público é o médico, mas isso é injusto, porque ele cobra um salário muito alto, que é difícil de cobrir. Os policiais militares têm um psicanalista para atender a corporação inteira! Os professores também não têm em quantidade suficiente. É preciso popularizar, ampliar o acesso. Devemos aproveitar o Janeiro Branco para também fazer essa crítica”, afirma.

Check up mental

Aloísio concorda com a provocação feita por esta repórter, de que é necessário instituir a importância do check up mental anual. O tradicional, conduzido por clínicos gerais e especialistas mais comuns, como cardiologistas, ginecologistas, oftalmologistas e odontólogos, precisa ser acrescido dos psicólogos e psicanalistas, pois a saúde mental precisa de monitoramento periódico e prevenção, não só por parte dos chamados psicóticos ou por quem já manifesta problemas acentuados derivados das neuroses, como depressão, ansiedade e ideações suicidas.

“Todos nós temos conflitos com a realidade e precisamos fazer terapia para prevenir doenças. E até para checar que está bem, porque às vezes a pessoa pensa que a vida dela é ruim, mas numa terapia ela pode ver que tem sim uma família acolhedora, que lida bem com os lutos que a acometem … isso tudo, num check up, pode aparecer. Quantos lutos você teve esse ano? Perdeu pessoas ou animais de estimação, perdeu emprego ou se aposentou? Tudo isso são lutos. Como está seu casamento ou sua solteirice? Como está a relação com seus pais, seus filhos, seus irmãos? São questões para serem trabalhadas numa avaliação rotineira”, exemplifica.

E os encaminhamentos de terapia, para além dos profissionais de psicologia, podem ser também para as Práticas Integrativas Complementares em Saúde (PICS). “Há uma iniciativa em Vila Pavão [município do norte do Espírito Santo] que já está em sua décima quinta edição, que é o seminário de prevenção em saúde mental, com muitas práticas alternativas. Além da psicologia, psicanálise e psiquiatria, há os chás, os banhos, reiki, homeopatia, acupuntura … é amplo. Imagina um bancário que fica em pé o dia inteiro autenticando, se ao final do dia o banco oferecesse um escalda-pés para ele, chegaria bem menos cansado em casa. Falo porque já fui bancário. Tudo isso apoia a saúde mental, são terapias milenares”.

Rede Caps no Espírito Santo

Atualmente, segundo a Sesa, existem no Estado 43 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), pontos estratégicos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que são referência no tratamento para pessoas adultas com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros. Três deles são mantidos pela Secretaria da Saúde (Sesa): Caps Cidade, localizado no Centro Regional de Especialidades (CRE), em Cariacica; Caps Moxuara (Cariacica); e o Caps Cachoeiro (Cachoeiro de Itapemirim). Os outros 40 Caps são geridos pelos municípios com recursos do Ministério da Saúde.

Divulgação/PMS

“Os Caps são unidades de saúde comunitárias e acessíveis, compostas por equipes multiprofissionais que trabalham de maneira interdisciplinar. Priorizam o atendimento a pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas em sua área geográfica. Esses serviços intervêm tanto em situações de crise quanto nos processos de reabilitação psicossocial”, explica.

Segundo a pasta, no Caps Cidade, cerca de 332 pessoas recebem acompanhamento anualmente. O Caps Cachoeiro monitora, aproximadamente, 400 usuários, enquanto o Caps Moxuara atende a 278 pessoas. Esses serviços oferecem acompanhamento periódico, conforme o Projeto Terapêutico Singular (PTS), incluindo sessões individuais e coletivas.

“É essencial que pessoas com sintomas não aguardem melhorias sem a orientação de um profissional de saúde. Recomenda-se procurar atendimento na Unidade Básica de Saúde local para acompanhamento pela equipe de Saúde da Família e, se necessário, encaminhamentos para atendimento especializado nos Caps. Caso haja um surto psiquiátrico, é necessário chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192) para encaminhamento ao serviço de urgência e emergência mais próximo, garantindo assim o atendimento necessário”, orienta a Sesa.

SBP-ES

Para saber mais sobre os atendimentos oferecidos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise no Espírito Santo (SBP/ES), acesse o site, o perfil no Instagram e o What´App (27-98825-9976).

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