sexta-feira, novembro 22, 2024
24.9 C
Vitória
sexta-feira, novembro 22, 2024
sexta-feira, novembro 22, 2024

Leia Também:

O diálogo como estratégia auxiliar no tratamento da insuficiência renal

Hospital capixaba aposta no poder da escuta e é pioneiro no Brasil a criar comitê de pacientes de hemodiálise

Um espaço de escuta ativa e de diálogo horizontal sobre as possibilidades de melhorar o atendimento às pessoas acometidas com insuficiência renal. Esse é o objetivo do comitê de pacientes da hemodiálise, criado no Hospital Santa Rita, em Maruípe, Vitória, numa iniciativa pioneira no país.

São vinte membros, contando os titulares e suplentes, sendo 12 pacientes (60%) e oito funcionários (40%), sendo que os representantes dos pacientes foram escolhidos por eles mesmos, em eleição interna, com cada membro representando o seu próprio turno, levando as demandas de todos os colegas.

Foto do leitor

Os cerca de 100 pacientes se dividem em seis turnos semanais, sendo três por dia: às 6h, às 11h e às 16h. Escolhido o horário, a pessoa opta pelo atendimento às segundas, quartas e sextas-feiras; ou às terças, quintas e sábados.

As reuniões duram duas horas e acontecem a cada dois meses. São iniciadas com a aprovação da ata da reunião anterior, seguem com a análise do plano de ação das demandas lá relatadas, sendo concluídas com a abertura para as novas colocações e demandas.

A ideia de criar o comitê surgiu em outubro passado a partir da constatação, pela equipe multidisciplinar da Hemodiálise – médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, nutricionista, farmacêutico – da dificuldade dos pacientes em se comunicarem pelos canais formais. “O paciente não ia para o SAC [Serviço de Atendimento ao Consumidor] por algum motivo, e a gente sabia que ele não estava falando o que precisava”, relata a gerente da Hemodiálise do hospital, a farmacêutica Beatriz Zandonade Jarske.

Debruçada sobre essa “inquietude”, a equipe decidiu encontrar uma forma de fazer o atendimento “com foco no paciente”. O resultado não poderia ser melhor, na sua avaliação. “A forma como o paciente fala hoje conosco é diferente de um ano atrás, porque ele acompanha o processo de melhoria”, diz, citando o caso da reforma da hemodiálise, uma mudança grande, complexa, e de médio prazo. Ao compartilhar o plano de ação da reforma, “aumenta o nível de compreensão sobre o porquê da demora”.

Paciente há sete anos, a técnica de enfermagem Lilian Cristina dos Santos percebe, que de alguma forma, o comitê quebrou a resistência que os usuários tinham em levar suas demandas para a gerência. “Reclamavam, reclamavam, reclamavam, mas não ligavam para o SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] ou pra Ouvidoria do hospital”, recorda.

Agora, a equipe está mais próxima dos pacientes, observa. “Quando não tinha o comitê, era difícil pedir para falar com psicólogo, assistente social, tinha que pedir para o médico. Agora, toda semana eles descem, mais de um dia até, se precisar”, relata.

São transformações, acentua Beatriz, que proporcionam uma satisfação muito grande também entre os profissionais. “Gerenciar um setor onde o paciente participa é muito mais interessante. A gente gosta de trabalhar com a experiência do paciente, o que para ele tem valor”.

Desejos e conquistas

Entre as mudanças já observadas, estão a facilidade de acesso à lista de espera para transplante de rins (a ansiedade em torno do telefone do hospital anunciando o transplante é uma constante); e a disponibilização da vacina contra Covid-19 dentro da clínica, como ocorre com a da gripe.
Beatriz acrescenta a mudança dos quebra-molas nas ruas internas da instituição, atendendo ao incômodo relatado por alguns pacientes com a grande trepidação sentida quando deitados na maca da ambulância. “Vamos avaliar os tipos de quebra-molas e fazer as adaptações”.

A Nutrição é outro setor que tem sido alvo de pedidos de mudanças. “Lanches mais nutritivos e saborosos, opções sem carne. É importante saber o que os nossos pacientes gostam mais de comer”, pontua Beatriz.

Nesse aspecto, o médico e também paciente Marco Ortiz reforça a necessidade de atenção. “Proteína animal faz mal aos rins. Seria bom os pacientes veganos não terem que trazer seus próprios lanches. Só uma gestão eficaz pode conseguir fazer acontecer a oferta de lanches veganos e saborosos”. 

Lilian cita a melhoria das cadeiras da hemodiálise, cuja compra está prevista para ocorrer até dezembro, e o pedido de treinamento dos técnicos de enfermagem novatos pelos mais velhos, também em andamento.

A lista de desejos ainda a serem realizados inclui: a automação das balanças, para agilizar o processo de pesagem dos pacientes antes e depois da hemodiálise; a disponibilização de uma lista impressa dos documentos necessários para atendimento em outras cidades, em casos de viagem; uma campanha de incentivo à doação de órgãos dentro do hospital; e a comunicação mais ágil com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) para atendimento a demandas como a autorização para situações de exceções no tratamento.

Sobre esse último, Marco relata uma demanda própria, que ilustra a importância de considerar as particularidades dos pacientes para uma melhor qualidade de vida de todos. Há dois meses, ele assinou uma carta em que se responsabiliza pelas consequências do uso da eritropoetina, apesar do histórico de um câncer de próstata já tratado. Até agora, no entanto, não houve resposta do Estado para que ele possa tomar o medicamento, o que o obriga a receber transfusões periódicas de sangue, situação que ele e médicos que o acompanham fora do hospital não consideram ser a melhor opção.

“A Hemodiálise precisa ter um canal de interferência mais ágil na Secretaria de Saúde para que esse trâmite não seja tão longo. Uma instituição está ligada a vários interesses e objetivos, por isso acredito firmemente que a participação dos pacientes é muito importante”, salienta. 

Autonomia e liberdade

O mais importante, no entanto, independentemente da complexidade das pautas e o tempo necessário para atendê-las, é a conquista da comunicação dialógica. Comunicação que alivia as tensões e insatisfações que naturalmente brotam da constatação cotidiana de estar dependente de uma máquina para viver e alimenta a alegria de sentir-se parte de um coletivo em evolução, que desburocratiza as necessidades de mais conforto e os desejos por driblar as limitações de autonomia e liberdade que teimam em se instalar durante as longas horas que se passa ligado à máquina.
Foto do leitor

A hemodiálise, explica a psicóloga Thamiris Moreno, que atuou na formação do comitê, “é um tratamento que realiza a filtragem do sangue, como substituto do rim” e que exige uma mudança importante na dieta. “Alguns alimentos rotineiros precisam ser evitados ou até mesmo cortados da alimentação”, acentua, destacando a necessidade de reduzir o consumo de água e de sal.
São questões que produzem uma resposta emocional geralmente intensa. “Há dificuldade na adaptação, sentimento de frustração diante da autonomia comprometida e das mudanças na imagem corporal, que mexem com a autoestima”, descreve.

Lilian diz não ter sofrido essas baixas emocionais. “Eu sabia que uma hora iria parar na hemodiálise. Quando aconteceu, tive apoio da família e consegui manter a prática de esportes e viajar”, conta. “Graças a Deus que tem a máquina! Se não eu não estaria contando essa história”, brinca. “Não é bicho de sete cabeças, dá pra levar uma vida normal”, afirma. 
Lilian continuou com a rotina de esportes e chegou a correr a 10 milhas Garoto em 2019. Foto: Arquivo pessoal

A adaptação rápida, no entanto, ela reconhece que é menos comum. “A gente vê que quem começa o tratamento fica baqueado, não sabe como vai ser. Principalmente nos mais idosos, gera depressão, ansiedade. Aí o médico chama a família e a equipe do hospital, e a gente também ajuda, conversando”, conta Lilian.

Passado esse primeiro impacto, o apoio mútuo continua vivo. “A gente se torna uma família na hemodiálise. Convive mais com os pacientes do que a própria família [de sangue]. Quando faço churrasco aqui em casa, chamo os pacientes”.

Trazer um pouco dessa fluidez do encontro e da confraternização informal é a “pegada” do comitê, retoma Beatriz. “Quando a gente consegue ser escutado, qualquer pessoa fica mais satisfeita. Reclamar de forma sistematizada, pegando um papel e escrevendo, incomoda um pouco. Quando a gente pode se expressar conversando, é mais tranquilo”.

Com seus conhecimentos médicos e de terapias naturais e com seus hábitos alimentares mais saudáveis, baseados na alimentação vegana, Marco Ortiz também se reconhece, como Lilian, ligeiramente fora do padrão de paciente de hemodiálise, encontrando alternativas que lhe trazem o maior conforto possível. “Cada paciente de hemodiálise crônica sofre de uma comorbidade. Com auxílio dos médicos, é possível abrandar o sofrimento”, declara.

Se o uso da eritropoetina ainda não foi autorizado, a realização de duas sessões semanais, ao invés de três, já acontece há um ano, com pleno consentimento da equipe do hospital. “A proteína animal prejudica os rins e todo os outros órgãos”, reafirma. Expandir o diálogo e alcançar gradativamente mais avanços e inovações seguras é um dos esteios do seu equilíbrio interno diante dos desafios do tratamento. “O hospital tem um padrão muito bom, com intenções reais de mudança e objetivo de se tornar referência”, atesta. 

Mais Lidas