Ciganos do Estado se articulam por inclusão em políticas de ação afirmativa, para reparar séculos de discriminação e exclusão
Tribusarelamos ariquerdá com os Acaldes do Gau. Muitos podem não compreender o que essa frase significa, mas cerca de 130 famílias do Espírito Santo sabem muito bem e a está colocando em prática. Está escrita em Chibi, dialeto da etnia cigana Calon, e significa “precisamos dialogar com o poder público”. Os Calon formam a comunidade cigana capixaba, presente em vários municípios. Nos últimos meses, a busca pelo diálogo com o poder público para resolver problemas oriundos da pandemia tem impulsionado sua organização, mas o objetivo é ir além do atual contexto e reparar séculos de discriminação e exclusão.
Como a regra para enfrentar a pandemia é “fique em casa”, sem que as mulheres possam ir às ruas para ler as mãos e ver o futuro, famílias ciganas têm suas rendas comprometidas e encontram dificuldade de acesso às políticas públicas devido a preconceitos que vêm de um passado remoto. Em busca de auxílio para sua família, a cigana Daiane de Jesus Santos, de Colatina, noroeste do Estado, procurou o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), mas acredita que os trajes ciganos, que denunciam sua etnia, foram motivo para que não fosse atendida no local.
“Estava vestida de cigana, entrei em uma fila, mas passaram um monte de gente na minha frente. Depois de muito tempo fui atendida e expliquei a situação da minha família, falei da necessidade de cesta básica. Mandaram eu ligar para a secretaria de Assistência Social, mas quando ligo ninguém atende”, relata Daiane, que retornou ao CRAS tempos depois, dessa vez, sem trajes ciganos. “Me atenderam bem, rápido, me pediram para preencher a ficha de cadastro no CadÚnico. Mesmo assim não recebi nenhuma cesta, mas foi visível que a maneira de me tratar foi diferente”, relata.
Daiane costuma ler cartas nas ruas e, assim como muitas outras ciganas, vender produtos artesanais, como panos de prato, crochê, entre outros, o que ficou impossibilitado pela necessidade de isolamento social. Ela é casada com Aparecido Correa de Sousa, um dos ciganos que percebeu que a mobilização da comunidade não se faz de forma isolada. Uma das maneiras de impulsionar a organização do grupo foi contactar o Instituto Cigano do Brasil (ICB), presente em 15 estados brasileiros, para relatar a situação pela qual a comunidade está passando em território capixaba durante a pandemia. Hoje, Aparecido é coordenador municipal do ICB em Colatina.
O Instituto tem como objetivo organizar o povo cigano, buscando diálogo com o poder público para inclusão da comunidade nas políticas de ação afirmativa. Para isso, impulsiona a organização dos ciganos em nível local, com coordenadores municipais e estaduais. No Espírito Santo ainda não há coordenador estadual, mas além de Colatina, há coordenação em Linhares, norte do Estado. “Vejo na minha atuação como coordenador uma forma de ajudar a comunidade cigana”, diz Aparecido.
O coordenador municipal de Colatina relata que a situação dos homens não é diferente da realidade das mulheres durante a pandemia. Aparecido conta que o desemprego, que já afetava os ciganos, tornou-se maior nesse período. “Sempre tivemos dificuldade de arranjar trabalho, pois quando a empresa descobre que a gente é cigano, somos reprovados no processo seletivo. A contratação não é garantia de colocação no mercado de trabalho, pois se descobrem nossa etnia somos demitidos. Agora, com a pandemia, o desemprego se tornou ainda maior”, conta.
Nem mesmo as chamadas barganhas não estão sendo possíveis de fazer, relata. Aparecido explica que em meio a essa prática, que segundo ele é comum principalmente entre os homens, está a troca de um produto por outro inferior para pegar a diferença do valor em dinheiro, e, assim, ter recursos para, por exemplo, pagar contas e comprar matéria-prima para confecção de produtos artesanais a serem comercializados, garantindo a sobrevivência da família.
Embora busquem cumprir o isolamento evitando ir às ruas, muitas vezes não é garantia de prevenção à Covid-19 entre os ciganos. Paulo Roberto Sesquim, coordenador municipal do ICB em Linhares, afirma que alguns deles moram em casas, mas também há os que vivem em acampamentos. Estes, afirma, contam com a solidariedade da comunidade para vencer a doença. “Quando há infectados, a gente se une para pagar o aluguel de alguma casa, garantindo que a pessoa possa fazer o isolamento e não transmitir o coronavírus para outras”, relata.
Dados não são contabilizados
Os dados sobre o número de ciganos infectados pela Covid-19 no Espírito Santo, segundo o presidente do ICB, Rogério Ribeiro, não têm sido contabilizados, mas é perceptível por meio de relatos da comunidade capixaba que o número é alto, afirma. Por isso, o ICB encaminhou na última quarta-feira (8) um ofício para o Governo do Estado no qual reivindica a inclusão de números sobre os ciganos no Painel Covid.
Rogério afirma que também não é possível saber a quantidade de vítimas fatais, tendo conhecimento de um caso, o da jovem Dayane Japonês Galvão, de 25 anos, em 12 de maio. Além de cigana, Dayane era sem-terra e foi a primeira vítima de Covid-19 nos assentamentos de reforma agrária no Espírito Santo. Ela era moradora de Fundão e estava grávida. O bebê sobreviveu. Dayane é um dos ciganos brasileiros homenageados no Memorial das Vítimas de Covid do Povo Cigano do Brasil, uma página do Facebook que busca homenagear os ciganos que morreram de Covid-19.
‘Vai ter muito trabalho para fazer no Espírito Santo’
Como não poderia deixar de ser, diante de séculos de exclusão, as reivindicações da comunidade cigana capixaba são muitas. Rogério aponta a falta de políticas públicas especificas para o grupo, realidade que, segundo ele, não é somente do Espírito Santo. “Não há políticas públicas específicas para os ciganos, como editais de cultura e empreendedorismo. Muitos ciganos são ligados à música, às artes. Vai ter muito trabalho para fazer no Espírito Santo, vai ser um trabalho de formiguinha, de muita luta, vencendo etapa por etapa, para falar ao governo que nós existimos”, ressalta.
Além da inclusão de dados sobre a comunidade cigana no Painel Covid, o ICB busca também a participação de representantes da comunidade cigana capixaba no Conselho Estadual de Igualdade Racial. O presidente do ICB relata que há um assento para os ciganos no Conselho, mas até o momento ele não foi ocupado. Também foi encaminhada para a Câmara Municipal de Linhares a reivindicação de um projeto de lei que institui o Dia da Etnia Cigana de Linhares, elaborado pelo vereador Estéfano Silote (Republicanos).
O projeto busca conscientizar a população sobre a importância da cultura cigana e a necessidade de combater o preconceito, a discriminação e a perseguição. O mesmo está sendo feito em âmbito estadual, com a tentativa, junto ao presidente da Assembleia Legislativa, Erick Musso (Republicanos), de aprovar o Dia da Etnia Cigana do Estado. Além disso, o ICB está cadastrado no ES Solidário, campanha do Governo do Estado que arrecada doações em dinheiro, cestas básicas, kits de limpeza e de higiene pessoal a serem destinadas para pessoas em situação de vulnerabilidade durante a pandemia. Entretanto, afirma Rogério, faz cerca de dois meses que a comunidade cigana capixaba não é contemplada com as doações.
Outra reivindicação é que se faça um mapeamento da comunidade cigana capixaba, com iniciativas como possibilidade de registro do atendimento a ciganos nas escolas e Unidades de Pronto Atendimento (UPA). “Quantos somos? Quantas comunidades há no Espírito Santo? Precisamos saber para ter clareza de onde estamos, onde não estamos e porque, para embasar a criação de políticas públicas”, defende.
Rogério declara que não há um mapeamento oficial da comunidade cigana capixaba. Entretanto, um levantamento feito pelo ICB aponta que há famílias em João Neiva (35), Fundão (27), Serra (8), Linhares (50), Guarapari (4) e Colatina (5). A comunidade cigana capixaba é maior, aponta Rogério, já que não foi possível contabilizar famílias presentes em outros municípios, como Cariacica, Vitória, Baixo Guandu e São Gabriel da Palha.