Mesmo passados quatro meses, o casal Priscila Sousa Claudino, 28 anos, e Elias Silva Claudino, 47, ainda não se recuperou de um grande trauma. A perda da única filha, Elisa Vitória Sousa Claudino, que morreu aos 43 dias de nascida na UTI Neonatal (também chamada de Utin), do Hospital Infantil de Vila Velha (Heimaba), no dia 13 janeiro deste ano. Para eles, não há qualquer dúvida: Elisa foi vítima de maus-tratos e negligência e, o mais grave, não foi a única a perder a vida por esses fatores.
Relatório com dados oficiais da Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (Sesa) ao qual Século Diário teve acesso indica que, no período de seis de outubro até 22 de dezembro de 2017, quase 30 recém-nascidos morreram na Utin do Heimaba. De acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), indicado por próprios trabalhadores da unidade no relatório, boa parte por infecção, o que levou a quadros de septicemia. Mas não apenas isso.
Antigos e atuais trabalhadores, incluindo médicos que atuaram na Utin, e o Sindsaúde-ES elencam outros fatores, como a iatrogenia (aplicação equivocada de remédios) e também a não administração devida dos medicamentos, além de descuidos com diversos protocolos, incluindo os de higienização. Para eles, há negligência da Organização Social Instituto de Gestão e Humanização (IGH), que assumiu o hospital em outubro do ano passado, após terceirização realizada pela Sesa.
Diante do cenário, o Sindicato preparou um dossiê denunciando crimes contra a infância, que será enviado para entidades em níveis estadual, nacional e até internacional. De acordo com o diretor de Comunicação da entidade, Valdecir Gomes Nascimento, tudo indica que os números de óbitos desde a terceirização, apenas na Utin, seja muito maior, alcançando até o patamar de 50 em sete meses, uma vez que os dados aos quais a entidade teve acesso referem-se apenas a um período de quase três meses. “É o que temos denunciando desde o ano passado. As crianças estão sendo chacinadas dentro do Hospital Infantil de Vila Velha”, foi enfático o diretor.
Os dados completos com os óbitos registrados em todos os setores do Heimaba desde a terceirização estão sendo omitidos pela Sesa, apesar de integrarem estatísticas de interesse público. Mas, para se ter uma noção do aumento, ex-servidores do hospital citam um relatório que registrou as mortes ocorridas nos meses anteriores à terceirização, cuja média era de sete em toda a unidade. Apenas em setembro, mês da transição para a OS, essa quantidade saltou para 15.
Segundo Valdecir Nascimento, as denúncias serão feitas nos Ministérios Públicos Estadual e Federal, Ministério Público do Trabalho, Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, Tribunal de Justiça, Conselhos Tutelares de Vila Velha e de Vitória, Ministério da Saúde, Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente, Defensoria Pública e ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Fatores para as mortes
Os relatos de mães, acompanhantes, ex-funcionários da Utin e outros profissionais de saúde convergem para o fato de que o Instituto de Gestão e Humanização tem descumprido cláusulas do contrato aos olhos do governo do Estado. Uma delas é contundente em afirmar que trabalhadores, para atuar na UTI Neonaltal, devem ter experiência na área.
Relatos, fotos e vídeos enviados para o Sindsaúde-ES indicam, ainda, que paredes do banco de leite, anexo à Utin, estavam tomadas por mofo. Além disso, o próprio espaço que abriga a UTI Neonatal tem problemas com infiltração. Numa chuva mais forte deste ano, foi preciso espalhar baldes pelo espaço em função das goteiras. Funcionários relatam que faltam materiais básicos, como luva, seringa, microporos, termômetros e até sabão, em alguns momentos.
Uma médica, que também preferiu o anonimato, relatou um cenário de caos na Utin do Infantil de Vila Velha.
“Teve um surto de sepse fúngica, que foi controlado, mas voltou a piorar. Houve semana que, em 48 horas, foram registrados cinco óbitos de prematuros por infecção na Utin. A administração da IGH, que assumiu o hospital, era completamente inabilitada, tanto que, em menos de seis meses, foi trocada. Agora estão treinando novas pessoas. Foram contratados muitos técnicos sem qualquer experiência, gente que não sabia sequer passar uma sonda, não sabia usar um termômetro. Davam medicação trocada, não devida ou na hora errada. Tinha hora que eu achava que até a medicação era falsificada porque, mesmo ministrada, a criança não melhorava. Os bebês pareciam cobaias. Às vezes, pensava se elas não estavam predestinadas a parar naquele hospital apenas para morrer. Morriam crianças que, simplesmente, não deveriam ter morrido”, desabafou a médica.
Outros profissionais da enfermagem relatam mais erros. “Teve um bebê que teve uma queimadura horrível no pé por usarem um material de forma incorreta, o Coban, para fixar o oxímetro. Ele teve garroteamento nos dedos, sendo necessária a amputação. Devido a complicações desse estado de saúde, ele veio a falecer. Teve outro recém-nascido que chegou perfeito, tinha apenas uma má formação intestinal. Fez a cirurgia e, certo dia, parou. Porém, como estava dentro de uma incubadora, quando perceberam havia ficado muito tempo sem oxigênio. Ficou com seqüelas irreparáveis”.
De acordo com informações da profissional, o contrato do IGH com a Sesa previa ampliação do serviço. Um exemplo seria o Pronto-Socorro passar a funcionar 24 horas e abertura de novos leitos. Quando as mudanças foram implementadas, o hospital, no entanto, não tinha pessoal nem infraestrutura para suportar a nova demanda.
Tortura, desumanidade e descaso
A história do casal Priscila e Elias, citado no início desta reportagem, é um misto de felicidade somado à tristeza extrema, momentos de desespero e dor dos quais os dois ainda não se recuperaram. No dia 1º de dezembro de 2017, Priscila deu à luz a Elisa no Hospital São João Batista, em Cariacica, uma recém-nascida esperada e planejada pelos dois, nascida com 38 semanas e pré-natal em dia. “Minha esposa descobriu que tinha ovários policísticos e, como havia engravidado, planejamos tudo muito bem porque sabíamos que poderia ser nossa única chance de ter um filho”, explica o marido.
Depois do nascimento, os médicos indicaram a transferência para a Utin do Heimaba, local onde Elisa iria se tratar de uma infecção urinária. No local, no dia em que receberia alta, foi descoberto que a bebê havia nascido com uma pequena anomalia no coração, que poderia ser corrigida numa cirurgia. No entanto, o procedimento não chegou a ser realizado, pois a recém-nascida, dois dias depois, contraiu uma bactéria que se alojaria no intestino e se tornaria fatal em pouco tempo. “Temos como provar que ela chegou ao hospital sem essa bactéria, que foi adquirida por um cateter proliferado”, disse Priscila, que atesta ter sido testemunha da falta de cuidados com a esterilização.
“Vi muito lixo na Utin. A gente não usava uma roupa própria pra entrar. Pra você ter ideia, até reforma faziam com os bebês lá”. O marido completa: “Minha filha poderia ter feito a cirurgia no coração e levar uma vida normal. Minha mãe fez cirurgia assim e viveu mais de 70 anos. O que fizeram conosco é desumano, um desrespeito, não desejo pra ninguém; foi uma tortura. É um sentimento de frustração enorme você não ter sido capaz de proteger e cuidar dos seus”. O casal reclama, ainda, de mudanças constantes de médicos e outros profissionais, além de sonegação de informação e maus-tratos dentro da unidade.
Improbidade administrativa
Para o advogado Amarildo Santos, comprovada a omissão e erros da OS IGH, o governo do Estado pode ser responsabilizado pelas mortes, e as famílias indenizadas. Segundo ele, quando uma criança entra numa unidade hospitalar pública, o Estado tem que garantir o tratamento e que ela saia curada, sempre que possível. Para isso, é preciso seguir rigorosamente todos os protocolos estabelecidos tanto internacionais, nacionais quanto regionais. “Se o Estado foi omisso e uma criança morrer em decorrência de uma bactéria, ele tem que ser responsabilizado. Isso não vai afastar a dor da família, mas tem um efeito pedagógico”.
Para Amarildo, o Estado pode ser enquadrado ainda no ilícito de improbidade administrativa. O advogado destaca que quando o governo justificou a terceirização do serviço, alegando que haveria mais eficiência e menor custo, e isso, de fato, não aconteceu, foi afastado o objeto do contrato, o que se enquadra em improbidade.
Século Diário conseguiu contato com outras mães que perderam seus filhos recém-nascidos na Utin do Heimaba. Muitas delas, no entanto, não quiseram dar entrevista, temendo represálias. Acionada pelo jornal, a Secretaria de Estado da Saúde não se manifestou sobre o assunto.