Pesquisa inédita da Fiocruz disponibiliza questionário online para 1,5 milhão de profissionais no país
Os chamados “trabalhadores invisíveis” da saúde somam 2 milhões de profissionais de nível técnico/auxiliar no Brasil, sendo que 1,5 milhão atua, há mais de ano, na linha de frente do combate à pandemia de Covid-19. Eles estão nas cozinhas, nas atividades de limpeza, recepção e segurança de hospitais e outras unidades de saúde, conduzem ambulâncias e macas, enterram os mortos, são técnicos e auxiliares de enfermagem, de Raio-X, de análise laboratorial, de farmácia, agentes comunitários de saúde… somando quase 60 profissões de retaguarda, essenciais para o devido funcionamento do sistema de saúde brasileiro, público e privado, mas que são invisibilizados em seu cotidiano.
Compreender suas condições de trabalho e de saúde no contexto da Covid-19 é o objetivo da pesquisa Os trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil, realizada por uma equipe de pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob coordenação da pesquisadora Maria Helena Machado.
Os pesquisadores já sabem que, durante a pandemia, esses trabalhadores estão tendo que lidar com a escassez de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), infraestrutura precária, condições de trabalho inadequadas, ritmo de trabalho elevado e estressante, vínculo de trabalho precário, desconforto e desproteção no trabalho, entre outras questões. Mas é preciso investigar mais profundamente esse universo, para atuar de forma a melhorá-lo.
“Desejamos analisar em profundidade as condições de vida, o cotidiano do trabalho e a saúde mental dos trabalhadores de nível médio e auxiliar, o qual denominamos de trabalhadores invisíveis da saúde”, afirma Maria Helena.
A coordenadora explica que, a partir dos dados e informações gerados na pesquisa, a proposta é auxiliar as entidades profissionais na fundamentação e formulação de propostas de melhorias para o sistema de saúde, além de ajudar no desenvolvimento de ações estratégicas e políticas públicas, no campo da gestão e condições de trabalho de todos eles.
A coordenador estadual ressalta que “eles são invisíveis não só dentro do local de trabalho, onde nem são cumprimentados”, mas que “socialmente são ainda mais”, constata. “Não sabemos sequer se as Organizações Sociais de Saúde [OSSs] fornecem os EPIs necessários”, exemplifica.
Sigilo das informações
A pandemia, ressaltam, alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores. Os dados revelam, ainda, que quase 50% admitiram excesso de trabalho ao longo desta crise mundial de saúde, com jornadas para além das 40 horas semanais, e um elevado percentual (45%) deles necessita de mais de um emprego para sobreviver.
“Após um ano de caos sanitário, a pesquisa retrata a realidade daqueles profissionais que atuam na linha de frente, marcados pela dor, sofrimento e tristeza, com fortes sinais de esgotamento físico e mental. Trabalham em ambientes de forma extenuante, sobrecarregados para compensar o elevado absenteísmo. O medo da contaminação e da morte iminente acompanham seu dia a dia, em gestões marcadas pelo risco de confisco da cidadania do trabalhador (perdas dos direitos trabalhistas, terceirizações, desemprego, perda de renda, salários baixos, gastos extras com compras de EPIs, transporte alternativo e alimentação)”, detalhou Maria Helena Machado, que também coordenou esse primeiro estudo.
Os dados indicam que 43,2% dos profissionais de saúde não se sentem protegidos no trabalho de enfrentamento da Covid-19, e o principal motivo, para 23% deles, está relacionado à falta, à escassez e à inadequação do uso de EPIs (64% revelaram a necessidade de improvisar equipamentos em algum momento). Os participantes da pesquisa também relataram o medo generalizado de se contaminar no trabalho (18%), a ausência de estrutura adequada para realização da atividade (15%), além de fluxos de internação ineficientes (12,3%). O despreparo técnico dos profissionais para atuar na pandemia foi citado por 11,8%, enquanto 10,4% denunciaram a insensibilidade de gestores para suas necessidades profissionais.
Desrespeito e fake news
“O estudo evidencia que 40% deles sofreram algum tipo de violência em seu ambiente de trabalho. Além disso, são vítimas de discriminação na própria vizinhança (33,7%) e no trajeto trabalho/casa (27,6%). Em outras palavras, as pessoas consideram que o trabalhador transporta o vírus, e, portanto, ele é um risco. Se não bastasse esse cenário desolador, esses profissionais de saúde experienciam a privação do convívio social entre colegas de trabalho, a privação da liberdade de ir e vir, o convívio social e a privação do convívio familiar”, explica Maria Helena Machado.
Esses fatos decorrem de várias questões, por exemplo, a falta de apoio institucional, segundo 60% dos entrevistados. A desvalorização pela própria chefia (21%), a grande ocorrência de episódios de violência e discriminação (30,4%) e a falta de reconhecimento por parte da população usuária (somente 25% se sentem mais valorizados) também afligem os profissionais de saúde.
A pesquisa abordou, ainda, as percepções deles acerca das fake news propagadas ao longo desta pandemia de Covid-19. Mais de 90% dos profissionais de saúde admitiram que as falsas notícias são, sim, um verdadeiro obstáculo no combate ao novo coronavírus. No atendimento, 76% relataram que o paciente tinha algum tipo de crença referente às fake news, como a adoção de medicamentos ineficazes para prevenção e tratamento, por exemplo. A porcentagem expressiva de 70% dos trabalhadores discorda que os posicionamentos das autoridades sanitárias sobre a Covid-19 têm sido consistentes e esclarecedores.
Perfil
O questionário da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz contemplou, além de médicos, enfermeiros, odontólogos, fisioterapeutas e farmacêuticos, todas as categorias profissionais da área da Saúde, inclusive administrador hospitalar, engenheiro (segurança do trabalho, sanitarista) e um expressivo número de residentes e graduandos da área da saúde, em mais de dois mil municípios. Os dados revelam que a Força de Trabalho durante a pandemia é majoritariamente feminina (77,6%). A maior parte da equipe é formada por enfermeiros (58,8%), seguida pelos médicos (22,6%), fisioterapeutas (5,7%), odontólogos (5,4%) e farmacêuticos (1,6%), com as demais profissões correspondendo a 5,7%. Importante registrar que cerca de 25% deles foram infectados pela Covid-19.