Após vencer as eleições, o então governador eleito Paulo Hartung (PMDB) advertiu que a população teria de comer muito sal em 2015. No final do ano passado, ele festejou os resultados contábeis do seu governo, mas se apressou em avisar que a política de austeridade continuaria em 2016. Só não revelou as consequências dos cortes, que não têm poupado nem mesmo os chamados setores essenciais: saúde, segurança e educação.
Na Segurança Pública, por exemplo, as marcas desses cortes podem ser sentidas pela população que procura atendimento nas delegacias de polícia do Estado. Uma das funções-chave na cadeia de atendimento é o escrivão de polícia. Um simples boletim de ocorrência de furto ou um flagrante de homicídio depende do trabalho do escrivão. O problema é que o número de escrivães está muito aquém do mínimo necessário para manter o serviço funcionando no limite. O resultado desse abandono, é que o serviço de atendimento nas delegacias está à beira do caos.
De acordo com a Associação dos Escrivães de Polícia do Espírito Santo (Aepes), a defasagem, considerando um estudo de 1990, é de 180 profissionais. O último concurso realizado em 2013, ainda no governo Renato Casagrande (PSB) e homologado em 2014, chegava perto desse número: formou cadastro de reservas de 170 candidatos, mas até agora o governo Hartung convocou apenas 17 candidatos — 11 em 2015 e mais seis este ano.
Segundo a diretoria da Aepes, o governo está apenas repondo as exonerações, que representam 10% das vacâncias. A associação estima que do final de 2014 para cá, pelo menos 70 escrivães se aposentaram e outras 60 devem se aposentar ainda este ano. Como não há reposição dos aposentados, o atendimento nas delegacias vai ficando cada vez mais precário. E mesmo que o governo chamasse todos os concursados do cadastro hoje, o número de escrivães continuaria defasado.
Desvio de função
A defasagem no quadro de escrivães gera problemas em toda a cadeia de atendimento: o cidadão, que geralmente procura uma delegacia em situações de estresse, fica ainda mais tenso quando se depara com um atendimento moroso e é obrigado a passar, às vezes, horas num ambiente insalubre. Não bastasse, o cidadão, devido à falta de estrutura das delegacias, muitas vezes é exposto a situações vexatórias.
Na Segunda delegacia Regional de Vila Velha, por exemplo, trabalham três escrivães nos plantões, mas só há duas salas (cartórios) para colher os depoimentos. Dois escrivães são obrigados a dividir a mesma sala. Imaginem o constrangimento para um cidadão que acabou de sofrer uma violência ser obrigado a ficar lado a lado com um criminoso que está sendo ouvido num flagrante. Essa não é uma situação hipotética, mas que acaba sendo recorrente em função dos problemas de infraestrutura.
A defasagem de escrivães também tem prejudicado a investigação de crimes. Segundo a Aepes, é muito comum que investigadores, que deveriam estar nas ruas tentando elucidar crimes, sejam obrigados a abandonar sua função para fazer o trabalho de escrivão por causa da falta desse profissional. Os agentes de polícia, que têm a função de efetuar prisões, entregar mandatos, cumprir buscas e reunir evidências para as investigações, acabam sendo desviados de suas funções e são obrigados a acumular também a função de escrivão. Embora para exercer o cargo de escrivão seja exigido bacharelado em Direito e para agentes de polícia ensino médio completo.
No interior, de acordo com a Aepes, a situação é ainda mais grave. A falta de escrivães em algumas delegacias tem sensibilizados os prefeitos. Para evitar o colapso do atendimento alguns prefeitos têm cedido servidores às delegacias para desempenhar a função de escrivão. Embora a iniciativa seja louvável, esses servidores geralmente não foram treinados para a função e muitas vezes comprometem a qualidade do atendimento e mesmo o registro dos fatos, ponto de partida para investigação e elaboração do inquérito. Sem contar que esse servidor deve estar desfalcando outro serviço da prefeitura, também importante para a população.
Hoje o Estado, segundo a Aepes, tem 374 escrivães. Um estudo feito para a realidade do Estado em 1990, ou seja, há mais de 25 anos, calculou a defasagem em 180 escrivães. Atualizando os dados da população e o crescimento das cidades, a Aepes estima que o número ideal de escrivães hoje para se prestar um bom trabalho à população estaria na casa de mil, ou seja, o Estado teria que contratar três vezes mais escrivães do que os 170 que aguardam convocação no cadastro de reserva.
A Aepes afirma que tem buscado interlocução com o Estado para solucionar o problema, mas esse diálogo, segundo diretoria da associação, tem sido difícil. O governo tem protelado o problema e não abre perspectiva de convocação dos candidatos do cadastro de reserva.
Nota da Redação: Não houve em nenhum momento por parte da Aepes intenção de diminuir a função de agente de polícia, mas apenas e tão somente apontar que esses profissionais também estão em desvio de função quando exercem a função de escrivão, que de fato é exclusiva a bacharéis em Direito.