Nas primeiras horas da manhã de um sábado (4 de fevereiro), seis mulheres de policiais militares decidem bloquear o Destacamento de Polícia Militar (DPM) em Féu Rosa, na Serra. O que parecia ser uma ação isolada e despretensiosa era o estopim da maior crise na segurança pública da história recente do Espírito Santo.
Poucas horas depois do bloqueio do DPM de Féu Rosa, o movimento já se alastrava rapidamente por quartéis, batalhões e unidades da PM na Grande Vitória e no interior do Estado. As mulheres impediam a saída de viaturas, que não podiam atender às ocorrências ou fazer o patrulhamento ostensivo. Em outras palavras: a PM estava em greve por tempo indeterminado.
A paralisação da PM, especialmente nos primeiros dias (antes da chegada das Forças Nacionais), causou pânico à população capixaba. Sem policiamento nas ruas, o Espírito Santo virou de cabeça para baixo. As cenas urbanas que corriam de forma virulenta pelas redes sociais lembravam as de filmes apocalípticos, desses que retratam o ser humano despertando seus instintos mais primitivos para sobreviver e retorna ao estágio de barbárie. Assassinatos, saques, assaltos e tiroteios à luz do dia, tudo acompanhado em tempo real. Ferramentas da modernidade que potencializam o pânico.
Não havia bairros mais ou menos seguros. O risco era iminente em qualquer lugar e para qualquer um. O muro que separava as chamadas zonas de exclusão das áreas mais abastadas das cidades fora derrubado sem aviso prévio. Reféns da criminalidade, como último recurso as pessoas se trancaram em suas casas. Ninguém arriscava pôr o nariz para fora. Sair, só mesmo em casos de emergência.
Vinte dois dias depois, coincidentemente num sábado (22/02), o movimento chega ao fim. Na queda de braço travada nessas três semanas entre o governo do Estado e as mulheres dos policiais não houve vencedor. Com o fim do movimento, é hora de contar as baixas. Os dois lados cometeram erros, esticaram demais a corda e saem sangrando do campo de batalha.
Mas a principal vítima dessa batalha insana foi sem dúvida a população. Mais de 200 pessoas foram mortas de maneira violenta nesses 22 dias. Uma média de 9 homicídios por dia, praticamente o dobro de assassinatos registrados nesse mesmo período do ano passado. Sem contar as sequelas psicológicas, sobretudo para quem sofreu direta ou indiretamente os efeitos da violência. Há ainda as perdas materiais, secundárias nessas horas, que são difíceis de calcular. Há quem estime que os prejuízos romperam a casa dos R$ 300 milhões.
Mas se houve erros de ambos os lados, a parte pesada da conta deve ficar para quem está na cabeceira da mesa, no caso, o governador Paulo Hartung (PMDB). Em última análise, a responsabilidade é dele. Quando o governador decidiu não pagar o reajuste anual dos salários ao funcionalismo público aceitou correr riscos.
Diferentemente da narrativa apresentada pelo governo durante a crise, todas as categorias tentaram chegar num acordo com o governo pela via do diálogo. Ninguém recorre à greve como primeira estratégia. Se houve intransigência, foi da parte do governador Paulo Hartung, que usou o ajuste fiscal para justificar a paralisação dos investimentos e os cortes lineares de gatos em todas as áreas da administração pública, inclusive as essenciais: saúde, segurança e educação.
Partindo do argumento de que o governador que consegue manter o salário em dia – mesmo enfrentando uma crise econômica dessa gravidade no País – deveria ser motivo de orgulho do funcionalismo e não “vítima” de pressão, o governador Paulo Hartung vinha até agora desmobilizando boa parte dos servidores que manifestavam descontentamento com a política de austeridade do governo, mas que temiam não receber o apoio da sociedade em caso de uma eventual paralisação dos serviços. Se a greve acontecesse, Hartung iria para a mídia imediatamente para mostrar à sociedade a ingratidão dos servidores, que deveriam olhar para o exemplo do vizinho Rio de Janeiro, que já não podia pagar os salários em dia em função de “gestões irresponsáveis”.
Ao mesmo tempo em represava as demandas do funcionalismo e defendia a importância de uma política econômica cada vez mais austera, Hartung exibia ao País o ajuste fiscal capixaba como modelo acabado de uma gestão de sucesso, que deveria ser replicado em outros estados.
A projeção pessoal que Hartung conquistou junto aos formadores de opinião nos últimos dois anos foi impressionante. Medalhões do primeiro time do jornalismo nacional e nomes badalados no mercado financeiro passaram a exaltar o modelo de gestão do governador capixaba.
O sucesso deixou Hartung mais confiante, que aproveitou a onda boa para ir mais longe. Incluiu na vitrine do ajuste fiscal, a gestão dos presídios e os resultados na área de segurança. Para quem havia ficado com a mácula de “senhor das masmorras” em razão da crise no sistema prisional que expôs o Espírito Santo à Organização das Nações Unidas (ONU), virar modelo de gestão prisional seis anos depois parecia obra de ficção, de tão improvável. O mesmo serve para a segurança pública. Depois de frequentar por mais de uma década a vice-liderança do ranking nacional de homicídios, poder dizer que o Estado tem hoje a menor taxa de assassinatos dos últimos 23 anos não tem preço.
Aliás, tem sim. Uma hora a conta chega. E chegou da pior maneira e no pior momento. Causando uma crise sem precedentes que expôs o Espírito Santo, desta vez, negativamente, para o País e para o mundo. Aquela máxima de que notícia ruim corre rápido foi confirmada mais uma vez. As imagens do caos foram estampadas não só no Brasil, mas nos grandes jornais dos Estados Unidos e da Europa.
Todo o trabalho de imagem construído por Hartung ao longo desses dois anos tinha ido parar nas mais remotas profundezas do poço. Talvez o abalo emocional causado pelo revés em rede internacional tenha refletido na condução desastrosa da crise.
O governador, ainda licenciado do cargo por motivos de saúde, falou nesses 22 dias de crise uma única vez à população, no dia 8 de fevereiro. Nessa ocasião e nas outras que se sucederam, sempre usando a mídia para se manifestar, Hartung deixou claro que não negociaria com os policiais. Sempre manteve um tom crítico do começo ao fim da greve. Disse que não negociaria com “chantagistas” e nem tampouco abriria o cofre para conceder qualquer reajuste à categoria, temendo causar um efeito cascata nas outras demandas represadas.
Com a posição consolidada sobre o movimento, Hartung estava mais preocupado em salvar nacionalmente sua imagem. Mobilizou a grande imprensa para mostrar que a gestão mais responsável do País estava sendo vítima de um movimento injusto, com traços políticos. Queixou-se que havia muito gente incomodada com a safra de notícias boas produzidas pelo seu governo.
Mesmo com a crise passando de aguda para crônica, o governo insistia numa estratégia bipolar para conduzir a crise. De um lado Hartung subiu o tom das críticas ao movimento e anunciava medidas cada vez mais duras para punir os militares “rebeldes”; de outro o secretário de Direitos Humanos Júlio Pompeu, fazendo as vezes de “interlocutor do bem” , representava o Palácio Anchieta na falsa mesa de negociação armada para teatralizar a busca do governo para solucionar o impasse por meio do diálogo.
Houve um erro crasso nessa encenação. As mulheres logo perceberam que estavam sendo manipuladas e reagiram de forma hostil à estratégia de Pompeu. O governo criou um Comitê de Negociações, mas nunca quis negociar nada. Desde o início da crise Hartung já havia afirmado que não atenderia às demandas do movimento, como acabou não atendendo no acordo firmado nesse sábado (25) no Ministério Público do Trabalho (MPT-ES) que pôs fim à greve da PM.
A incompetência do governo na gestão da crise na segurança foi comprovada no desfecho de todo esse imbróglio. A iniciativa de procurar o MPT-ES para fazer a mediação de um acordo partiu da Central Única dos Trabalhadores (CUT-ES). Quem diria. Com sinal verde do MPT, a CUT procurou as partes, mulheres e governo, para propor um audiência de conciliação.
Profissionais em mesas de negociações, a CUT e o MPT demoraram oito horas para costurar um acordo, que, é verdade, não atende a um único ponto da pauta inicial das mulheres dos policiais militares, mas que conseguiu solucionar um problema que parecia insolúvel para o governo: a desobstrução dos batalhões da PM.
A CUT e o MPT não fizeram nada de excepcional, mas respeitaram uma regra básica, imprescindível em toda mesa de negociação. Quando se tem um impasse entre duas partes, a figura do mediador é essencial. Cabe ao mediador pacificar os conflitos e buscar saídas consensuais para a disputa. Uma arte que requer vocação para o diálogo e formação democrática. Quesitos estranhos a uma gestão autoritária e prepotente, que está acostumada a resolver conflitos por meio de ameaça, intimidação, perseguição e retaliação. Ferramentas usadas desde o início da crise, mas que não se mostraram eficazes tampouco efetivas.