“Enquanto a gente enterra os nossos filhos, eles vão para a casa beijar os deles”, protestou uma das mulheres protagonistas do ato
Andrea relata que o filho estava na rua quando os policiais chegaram atirando. Ele caiu. A dona de casa afirma que o rapaz estava armado, mas que já se encontrava caído e, mesmo assim, a PM usou a arma de Rian para matá-lo. “Pegaram ele pelas pernas, pelos braços. Saíram arrastando para a viatura, simulando que prestavam socorro”, relata, aos prantos. Para Andrea, “a PM é mal preparada, ao invés de acolher a gente, mata a todos nós. Eu morro a cada dia”, diz.
A “morte diária” a qual se refere Andrea é devido ao fato de que, apesar de lutar para que não haja outros Rians, muitos outros vieram a óbito nas ações policiais depois daquele mês de dezembro de 2021. Portanto, cada morte ocorrida a faz lembrar do que aconteceu com seu filho. Uma vítima recente foi Natanaelton, de 24 anos, assassinado há um mês. Filho da empregada doméstica Santa Aparecida, ele estava indo para a casa da irmã, no bairro Bonfim, quando encontrou policiais na rua e foi baleado no braço.
Já caído no chão, pediu para que não fosse assassinado, mas recebeu um “tiro de misericórdia” na cabeça. “Minha vida acabou!”, sentencia Santa. O ocorrido não a impede de fazer planos para o futuro, mas se antes esses planos eram pensando na vida em família, agora são de como traçar estratégias para sofrer menos com a ausência do filho caçula, já que o simplesmente não sofrer, não sentir, é impossível. “No Natal nem quero ficar aqui. Ele sempre estava com a gente. Todo domingo eu lembro dele, porque sempre ligava para perguntar se eu queria dinheiro para fazer feira”, recorda.
Irmã de Natanaelson, a também dona de casa Natifa Beirão rememora que, ao ouvir os tiros, ela e outras pessoas correram para tentar ajudar a pessoa, mesmo não sabendo quem era, mas os policiais atiraram contra, fazendo com que corressem para se proteger. Somente depois Natifa soube que a vítima era seu irmão.
Uma história semelhante é narrada pela articuladora social Alechandra Rodrigues, cunhada de Danilo, assassinado aos 16 anos em julho de 2021, reforçando que antes dessas datas, as comunidades periféricas já haviam perdido muitos outros.
Alechandra relata que a PM adentrou o bairro Bonfim quando seu cunhado estava no mirante com os amigos. Danilo, então, entrou no quintal de casa. Antes de chegar no local, a PM atirou em seu pescoço. Ao cair, Danilo bateu com a cabeça em uma pilastra. A família, recorda Alechandra, tentou socorrer o rapaz, mas foi impedida pela polícia. Mesmo assim, um cunhado colocou a vítima nas costas, mas ao tentar descer uma escadaria, recebeu da PM ordem para que parasse. Danilo foi levado pela própria PM para o Hospital São Lucas, onde morreu.
“Os policiais nem com algema andam mais, é com fuzil. Hoje eu costumo falar que eles recebem por cabeça. Na comunidade nós viramos gado. O tiro que dão não é na perna, no pé, é na cabeça ou no peito”, destaca.
Essas são apenas algumas das muitas histórias contadas enquanto a manifestação se concentrava na praça. No trajeto, rumo ao quartel da PM, em Maruípe, os manifestantes pediam ainda por políticas públicas de saúde, educação, geração de emprego e renda, direitos reivindicados por um público de faixa etária diversificada, abrangendo crianças, adolescentes e adultos.
O ato, que ocorreu em todo o Brasil, contou com a participação de diversas entidades da sociedade civil, majoritariamente as ligadas ao Movimento Negro. Também se fizeram presentes os vereadores Karla Coser (PT) e André Moreira (Psol), a deputada estadual Camila Valadão (Psol), representantes dos mandatos da deputada estadual Iriny Lopes (PT) e dos deputados federais Helder Salomão (PT) e Jack Rocha (PT), além do padre Kelder Brandão, coordenador do Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória e pároco da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, em Itararé. Kelde sofreu tentativas de intimidação por parte da PM em julho passado, por criticar as ações policiais no Território do Bem.
Já em frente a quartel, um dos destaques feitos pelos manifestantes foi quanto à nomenclatura da região, denominada pelos moradores de Território do Bem, mas chamada pela grande imprensa e pelas forças de segurança como Complexo da Penha, nome considerado pejorativo. Posteriormente, os manifestantes retornaram para a Praça de Itararé, onde o protesto foi encerrado.
Manifesto
Na praça de Itararé, foi lido um manifesto nacional pelo fim da violência policial e de Estado. “Enfrentar o racismo e as diversas violências e desigualdades decorrentes dele não é tarefa exclusiva da população negra. É responsabilidade de toda a sociedade brasileira. Dentre as consequências do racismo, a face mais perversa se expressa nas políticas de segurança pública, que elegem o corpo negro como inimigo e alvo. E isso estimula outras violências em todas as dimensões da vida”, aponta o documento.
O manifesto pede justiça para a Iyalorixá Maria Bernadete Pacífico e seu filho, Binho. A sacerdotisa foi assassinada na última quinta-feira (17). Lutava há seis anos por justiça ao assassinato de Binho e por titulação de terras quilombolas na Bahia. “Os crimes mostram que o Estado tem exterminado nosso presente, comprometido nosso futuro e negado o direito a uma vida digna, sonhos e bem viver, seja pela omissão, ausência ou pela leniência. Exigimos Justiça por Bernadete, Binho e todo povo negro brasileiro!”.
Também é reivindicado o fim das chacinas. No texto, consta que a polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas em pelo menos seis estados brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, entre 2017 e 2019, as polícias brasileiras mataram ao menos 2,2 mil crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos. Os dados mostram, ainda, que, no Brasil, em 2022, 83,1% dos assassinatos decorrentes de intervenção policial eram de pessoas negras.
Além disso, são apresentadas 11 reivindicações: que o Superior Tribunal Federal (STF) proíba operações policiais reativas (com caráter de vingança) a assassinato de policiais e operações invasivas e em comunidades sob pretexto do combate ao tráfico de drogas; lei federal que torne obrigatório e regulamente câmeras em uniformes de agentes de segurança pública, em todos os níveis (guardas municipais, polícias estaduais e federais), além de agentes de segurança privada em todo país; plano nacional de reparação para familiares e vítimas do estado, bem como para seus territórios, pelo Governo Federal; federalização de todos os casos em que o resultado da incursão policial caracterize assassinatos, execuções e chacinas e massacres; construção de uma política de drogas que seja fundamentada em evidências científicas, na garantia dos direitos humanos e individuais, na redução de danos, na promoção da educação e da saúde pública, sua descriminalização, colocando definitivamente um fim à guerra às drogas; limites às abordagens policiais para que não sejam racistas e discriminatórias a partir da criação de critérios objetivos para a “fundada suspeita”.
Também constam entre as reivindicações o fortalecimento dos mecanismos de prevenção, combate e rigorosa punição à tortura, como as audiências de custódia presencial e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, resgatando inclusive as 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade de 2014; revogação da Lei de Drogas 11.343/2006, o fim dos homicídios decorrentes de oposição à ação policial e a desmilitarização das polícias; métodos de controle externo à atuação policial e a responsabilização e cobrança ao papel constitucional dos Ministérios Públicos no que diz respeito à limitação da atuação violenta das polícias; suspensão de qualquer investimento em construção de novas unidades prisionais, e proibição absoluta da privatização do sistema prisional, sem prejuízo de uma solução imediata às superlotações dos presídios brasileiros, dado o gravíssimo aviltamento à dignidade humana; e reconhecimento dos terreiros como espaços do sagrado e pela titulação dos territórios quilombolas no Brasil.