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Militarização: as denúncias de métodos punitivos e tortura na Unis de Cariacica

Iases prestou esclarecimentos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por descumprir medidas de proteção à vida

Sinases

“Consiste em gerar dor no adolescente, ao dobrar seu pulso de maneira a encostar os dedos no antebraço”.

Essa é a descrição de um dos métodos punitivos praticados na Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) de Cariacica. A denúncia foi feita na audiência realizada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na última quarta-feira (2). A Corte ouviu explicações sobre o descumprimento de medidas de proteção à vida em quatro locais de privação de liberdade do Brasil.

O relato foi feito pelo representante do Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH), Gilmar Ferreira. Segundo ele, o método é conhecido popularmente como “Pata de Vaca” e seria direcionado a adolescentes que apresentam comportamentos apontados como agressivos ou alterados. “Os castigos corporais, como práticas cotidianas, continuam sendo uma constante na Unis e denunciados pelos adolescentes há alguns anos”, ressaltou durante a audiência.

Uma segunda técnica, conhecida como “procedimento”, seria utilizada como castigo, no qual os adolescentes são colocados abaixados, com as mãos cruzadas sobre a nuca, “até o restabelecimento da ordem”. “Tratamos aqui da institucionalização da tortura, como prática pedagógica contra o adolescente”, apontou Gilmar.

Ales

A representante da ONG Justiça Global, Raphaela Lopes, descreveu o relato de um interno na Unis de Cariacica, referente ao dia 21 de janeiro deste ano.

“Se lê que um adolescente alegou estar com falta de ar por ter sentido cheiro de gás, que teria sido jogado em outro alojamento e que, ao ser levado ao setor de saúde, ficou alterado e proferiu ameaças aos servidores. De acordo com os registros, o ato de estar alterado – e ressalte-se que não há registro que o adolescente tenha chegado às vias de fato – teria feito o agente colocar o adolescente deitado no chão, deixando-o em posição de procedimento para que ele não se ferisse, tendo havido o uso de algemas. Em suas declarações, o adolescente afirmou que o agente não só teria agido de maneira violenta, mas colocado o joelho sobre suas costas”, relatou.

Segundo Raphaela, o uso do armamento não letal se tornou um método corriqueiro para impor disciplina aos adolescentes internados. “Interessa aos representantes que o Estado explique o que seria um adolescente alterado. O que tem levado os adolescentes a estarem alterados ao ponto de serem agredidos com espargidores [sprays] de cânfora, pimenta e gengibre. Há inclusive registros de uso reiterado desse tipo de equipamento em alojamentos destinados à quarentena de adolescentes com suspeita e confirmação de Covid”, apontou.
Reprodução

O diretor-presidente do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases), Fábio Modesto, alegou que as tecnologias não letais utilizadas na instituição são à base de óleos vegetais, certificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Esse equipamento não causa qualquer lesão ou dano à saúde humana”, justificou.

Em relação aos relatos apontados, afirmou que as denúncias foram contestadas no último relatório elaborado pelo instituto, e convidou a Corte a visitar a Unis e outras unidades do Iases.

Modesto também afirmou que a média de ocupação atual da Unis de Cariacica é de 83%. De acordo com ele, quatro processos de denúncias de maus-tratos e tortura tramitam na Corregedoria. Outros quatro foram instaurados, mas arquivados por ausência de indício mínimo de provas.

Reprodução

Procurado por Século Diário após a audiência, o Iases não respondeu se recebeu denúncias referentes à realização dos métodos punitivos conhecidos como “Pata de Vaca” e “Procedimento”. Disse apenas que, desde 2020, não há registro de denúncia por maus-tratos e ou tortura na Unis de Cariacica.

Um sistema militarizado

Outro tema abordado na audiência foi a crescente militarização do sistema socioeducativo do Espírito Santo. De acordo com Gilmar Ferreira, relatos mostram que símbolos e práticas militarizadas, como fardamento, comportamentos e expressões corporais mostram que, cada vez mais, os agentes se movimentam como uma tropa militar que reivindica o tratamento como tal.

“Esse fator se torna particularmente grave no caso da Unis [Cariacica], porque a unidade está estruturada como um presídio. Apesar de ser uma unidade socioeducativa, tem características arquitetônicas de um presídio. Não só porque os alojamentos são celas, mas pelos portões que são do mesmo tipo dos presídios de segurança máxima. Ou seja, completamente fechados”, enfatizou.

‘Clara incompatibilidade’

O juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Ricardo Pérez Manrique, lembrou que as unidades socioeducativas são destinadas a pessoas que cometeram infrações penais sendo menores de idade e, seguindo as diretrizes brasileiras, deveriam ser submetidas a um processo socioeducativo e não de penalização. A autoridade definiu a situação da unidade capixaba como uma “clara incompatibilidade entre um sistema que se militariza e um sistema que pretende ser socioeducativo”. 

As denúncias sobre uma tendência de militarização dos sistemas socioeducativos do Espírito Santo são recorrentes. Em novembro de 2020, o Comitê Popular de Proteção dos Direitos Humanos no Contexto da Covid-19, composto por fóruns, sindicatos, movimentos sociais, associações e outras entidades da sociedade civil organizada, divulgou uma carta contra o punitivismo verificado na gestão das unidades.

O motivo foi a publicação da Instrução de Serviço (IS) Nº 0326, de 15 de outubro, que regulamentou um novo uniforme dos agentes socioeducativos com características de agentes do exército. De acordo com o comitê, a ação era “um enorme simbolismo de que a socioeducação para o atual governo é letra morta e que o recrudescimento, punitivismo e o castigo estão sendo consagrados como marcas da atual gestão”.

Na ocasião, o diretor presidente do Iases, Fábio Modesto, alegou que o novo uniforme “fortalecia a identidade organizacional e a carreira dos agentes socioeducativos”.

Protocolo contra tortura 

Outro apontamento das entidades de Direitos Humanos capixabas na audiência foi sobre a dificuldade de monitoramento das unidades socioeducativas durante a pandemia do coronavírus. No início da semana, a coordenadora do CDDH da Serra, Galdene Santos, afirmou a Século Diário que esse é um dificultador, já que o acompanhamento não pode ser feito de forma presencial.

Durante a audiência, o juiz Luís Geraldo Lanfredi, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), garantiu que o retorno das visitas presenciais será um dos protocolos de ação adotados para o enfrentamento da tortura e da violência intramuros.

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“O Conselho Nacional de Justiça compromete-se com a Corte com a elaboração e orientação técnica para viabilizar a retomada imediata das visitas de inspeção de representantes dos peticionários, da Defensoria Pública, do Ministério Público e dos conselhos de direito, em conformidade com os protocolos de biossegurança”, adiantou.

A audiência

A Unis de Cariacica foi uma das pautas da audiência virtual realizada na última quarta-feira (2), que também convocou o Estado brasileiro a explicar o descumprimento de medidas em complexos penitenciários de Pernambuco, Maranhão e em um instituto penal do Rio de Janeiro.

No caso do Espírito Santo, a audiência faz parte do acompanhamento de denúncias de 2009, que relatavam crimes de tortura, abuso sexual, superlotação, condições insalubres e maus-tratos na unidade socioeducativa de Cariacica.

Em 2011, a Corte determinou ao Estado que adotasse medidas necessárias para erradicar as situações de risco e proteger a vida e a integridade pessoal, psíquica e moral das crianças e adolescentes privados de liberdade na unidade. Outra medida era para que os representantes dos internos participassem do planejamento das ações, como o atendimento médico e psicológico dos socioeducandos, e fossem informados sobre a execução das medidas.

Desde então, a Unidade Socioeducativa precisa prestar relatórios que comprovem o cumprimento das medidas, de quatro em quatro meses. Após o envio, entidades estaduais de direitos humanos apresentam um parecer sobre o relatório, com a própria versão do tratamento recebido pelos socioeducandos nas instituições. 

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