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‘O Espírito Santo não sabe gerenciar o processo de violência contra a mulher’

A coordenadora do Fordan, Rosely Pires, analisa as políticas de combate à violência contra a mulher no Estado

A gestão de Renato Casagrande (PSB), por meio da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), divulgou dados sobre a segurança pública relativos a 2023. Entre os dados estão os referentes à violência contra a mulher. O documento aponta que no ano passado aconteceram 88 homicídios e 35 feminicídios. Comparados com o levantamento feito em 2022, mostra-se que a quantidade de feminicídios se manteve e a de homicídios, que em 2022 foi de 96, reduziu.

Contudo, conforme afirma Rosely Pires, fundadora e coordenadora do Fordan, projeto de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que acolhe mulheres vítimas de violência na Grande São Pedro e faz encaminhamento da denúncia aos órgãos competentes, tanto estaduais quanto nacionais, não há muito o que comemorar. “A manutenção do número de feminicídios é ruim, pois com o investimento que o Governo Federal tem feito no combate à violência contra a mulher e a quantidade de verba recebida, é indicativo que o Espírito Santo não sabe gerenciar o processo de violência contra a mulher”, diz.

Em entrevista a Século Diário, Rosely analisa os dados apresentados pela Sesp bem como os números de outros estudos, aborda as políticas públicas em nível federal e estadual, opina sobre a perspectiva de segurança pública seguida no Espírito Santo, além de apontar as principais falhas nessa política.  

O que os dados divulgados no final de 2023 e outros já analisados pelo Fordan apontam?

A gente observa que em 2022 tivemos dados absolutos de homicídio, no total de 96. Em 2023, foi 88, tem uma queda significativa. Olhando os dados apresentados pela Sesp, tem os mesmos números em 2022 e 2023 em relação ao feminicídio, ou seja, 35 ocorrências. No Mapa da Violência Contra a Mulher, outra pesquisa já apresentada pela Sesp, nós vamos encontrar o mês que a mulher mais morre, que são março e dezembro. Março com 9 casos e dezembro com 11. Os dias da semana em que a mulher mais morre são sábado (16%), quarta-feira (22%) e domingo (25%).
As regiões onde mais morrem são a Metropolitana (46%), noroeste (22%), norte (17%), sul (12%) e serrana (5%). Os dados gerais também trazem questões. Os dias da semana em que há mais mortes são aos finais de semana, no horário noturno, sendo que 80% das vítimas são pessoas negras. Além disso, o Espírito Santo está em segundo lugar no ranking no Brasil do aumento do porte de arma de fogo, de acordo com o Anuário da Segurança Pública divulgado em 2023. Tem relação com o estímulo de Bolsonaro, com decreto para compra de arma de fogo. Mesmo que os decretos tenham sido suspensos por Lula e pelo STF [Supremo Tribunal Federal], o número de armas que vem circulando nos últimos anos ainda é muito grande. A bebida alcoólica também influencia. O Espírito Santo lidera o ranking de casos de violência cometidos após ingestão de bebida alcoólica, de acordo com dados do Centro de Informação de Saúde e Alcoolismo.
Com a posse do presidente Lula, vemos uma preocupação maior com o combate à violência contra a mulher. O Governo do Espírito Santo tem usado isso como um aliado na política de segurança pública?
O presidente Lula sancionou a Lei 14.541/2023, que trata da obrigatoriedade do funcionamento ininterrupto das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulher. O artigo 3º prevê que as delegacias devem ter salas reservadas, com policiais de preferência do sexo feminino, com acolhimento humanizado e recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para que as delegacias estejam em conformidade para esse acolhimento. No Espírito Santo, a verba foi destinada para a compra de mais de 800 fuzis israelenses. Mas o dinheiro deveria ser destinado prioritariamente a abrir mais Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.
Como isso tem afetado o atendimento à mulher vítima de violência?
Pegando o exemplo da região da Grande São Pedro, com base no geoprocessamento do Fordan, que monitora quais são as redes de apoio, os lugares que a mulher pode procurar em caso de violência, vamos falar da distância que uma mulher que mora em São Pedro tem que percorrer para chegar à delegacia mais próxima. A delegacia de Santo Antônio não está fazendo atendimento de violência contra a mulher. A mulher vai ser levada pela polícia para a delegacia da Reta da Penha. Depois do atendimento ela volta para casa a pé. Se ela foi pega sem bolsa, nem nada, e geralmente é assim, volta sem condições de pagar o ônibus, pois não é dado transporte para ela voltar para casa.
Outra questão importante é o teleflagrante. Estamos falando de uma proposta do estado do Espírito Santo que transforma o serviço das delegacias, que segundo a lei deveria ser algo humanizado, em atendimento remoto. A Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa fez uma reunião com a Polícia Civil para discutir e apresentar os problemas principais do teleflagrante. Isso foi em setembro de 2023, porque os advogados, a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], o sindicato dos delegados, apresentaram problemas nesse tipo de atendimento. O sindicato mostrou que o teleflagrante é mais uma falha estrutural, não funciona. Nós, do Fordan, tivemos problemas com o teleflagrante. O principal foi quando a advogada e a vítima chegaram às 14h para esse tipo de atendimento. Ficaram lá até às 20h porque o teleflagrante estava fora do ar. A mulher e o agressor na delegacia, esperando o teleflagrante estar em condições de funcionamento. 
Quais outras falhas institucionais “saltam aos olhos” no combate à violência à mulher?
Quando a gente vê no Século Diário a entrevista da coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Espírito Santo, em parceria com o Fordan, falar de varas híbridas, é importante destacar isso. A mulher vai na Vara de Violência Doméstica para fazer denúncia, conseguir medida protetiva, mas precisa de pensão alimentícia, para isso tem que ir na Vara de Família. Uma de nossas mulheres sofreu violência, fez denúncia. Quando foi na audiência na Vara de Família, o juiz não sabia que essa mulher estava sofrendo violência. O agressor entrou com advogado para que a mulher não conseguisse pensão para os dois filhos atendidos pela Apae. Ela estava prestes a não conseguir a pensão e ser estigmatizada como alguém que não consegue gerenciar o próprio dinheiro, louca. Expliquei para o juiz a situação da mulher e porque aquele homem queria que ela não gerenciasse o dinheiro, dependendo dele para comprar um leite, alimento para as crianças. Mostrei sim que ela conseguia gerenciar dinheiro, pois ela cata siri, vende avon. E o juiz concedeu a pensão. Quanto à medida protetiva, não precisa abrir inquérito policial para solicitar, mas na prática, no Espírito Santo isso não aconteceu.
Para você, o Espírito Santo trabalha a segurança pública baseado em qual perspectiva?
Outra análise é sobre a lei Não é Não, agora de dezembro, a Lei 14.786, lá diz especificamente que “será implementado no ambiente de casas noturnas e boates, espetáculos musicais realizados em locais fechados e shows com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção de mulheres e para prevenir constrangimento e violência contra elas”. Porque a preocupação com venda de bebida alcoólica? Porque o Espírito Santo é um dos líderes no ranking de mortes causadas após ingestão de bebida alcoólica. O Espírito Santo tem uma segurança pública que trabalha na perspectiva da repressão, e da vigilância, em vez de trabalhar a prevenção, integração e atividades sociais. O Espírito Santo é o 2º com a maior taxa de letalidade policial, tem a maior taxa de morte violenta intencional e é líder na taxa de latrocínio e lesão corporal. Uma segurança pública que não tem a preparação necessária para fazer acolhimento à vítima não consegue reduzir taxa de feminicídio. O feminicídio, que acontece nos lares, precisa de uma abordagem humanizada, seja quando a mulher sofre a violência, seja quando é levada para a delegacia para fazer denúncia, seja quando há feminicídio.

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