Pelas ruas de Vitória, manifestantes pediram o fim da violência contra a mulher e destacaram o legado de Julieta
Em 2020, Julieta Hernández, a palhaça Miss Jujuba, junto a um grupo de amigos, confeccionou cartazes para um protesto contra o extermínio de jovens no Morro da Piedade, região do Centro de Vitória. Quase quatro anos depois, esses mesmos amigos confeccionaram cartazes para ir às ruas da Capital pedir justiça para Julieta, nessa sexta-feira (12). Juntaram-se a eles tantas outras pessoas que, tendo convivido com ela ou não em suas passagens pelo Espírito Santo, se indignam com o assassinato brutal da artista e reivindicam o direito de ir e vir de todas mulheres e, também, seu direito de viver.
A manifestação saiu da Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, local, inclusive, em que Julieta já fez apresentações, e seguiu rumo à Praça do Papa, na Enseada do Suá. No trajeto, além dos cartazes, gritos de “Julieta, presente!”; canções latinoamericanas, já que a artista, venezuelana, defendia a cultura latina, a unidade dos povos e, no Brasil, fazia o trabalho educador de descolonização ao dizer para os brasileiros “sim, vocês são latinoamericanos”. O trajeto também foi marcado por músicas feitas em homenagem a ela após a descoberta de sua morte e, para quem nunca havia escutado, e para aqueles que foram privados de ouvi-la novamente, a sua voz falando sobre o destino.
Mas não esse destino determinado pela providência, e sim, o de sua próxima viagem. “Para quem me pergunta, e aí, qual é o destino da sua viagem? Eu responderia: o meu destino realmente está prestes a me alcançar. Está por ir, por vir, por me achar, por se perder. O meu lugar de chegada nessa viagem é Venezuela, sim. Venezuela é um dos meus destinos, mas também tem outro, outros, vários, inomináveis, invisíveis, pequenos, grandes, surpreendentes, paisagem, bicho, mato, gente, cheiro de manga rosa com cheiro de mar no meu pé descalço, uma nuvem, uma música, uma ideia”, diz o áudio em um português bastante claro, mas com um leve sotaque que denuncia que se tratava de uma hermana nossa.
Foi durante uma de suas viagens, a bordo de sua bicicleta, que Julieta foi assassinada em 23 de dezembro. Seu corpo foi descoberto no dia 7 de janeiro, após mobilização nacional de mulheres palhaças que a monitoravam em sua viagem. Após não conseguirem mais contatá-la, começaram uma busca, até conseguirem enviar duas palhaças para Manaus, último ponto de contato com Julieta e acionar a polícia, que encontrou seu corpo. Seu último destino foi a cidade amazonense de Presidente Figueiredo, rumo ao seu país, para finalmente, depois de nove anos, rever sua mãe e sua irmã. Contudo, o reencontro, que estava tão próximo, foi impossibilitado eternamente pela violência contra a mulher, que no Brasil tem índices assustadores.
A Julieta que levava em sua bagagem seus objetos pessoais, portava também solidariedade e afeto por onde passava. A Julieta que se indignou com o extermínio da juventude no Morro da Piedade, foi a mesma que avistou na estrada um grupo de crianças que passavam fome e utilizou os poucos recursos financeiros que tinha para alimentá-las. A partir daí, conheceu seus pais, hospedou-se na residência do casal, e foi brutalmente assassinada por causa de um celular que, inclusive, havia sido comprado por meio de uma vakinha para que ela divulgasse seu trabalho, mantivesse contato com amigos de várias partes do mundo, e, generosamente, compartilhasse com as pessoas as experiências vividas em seus percursos.
As viagens, os destinos, também estiveram presentes em alguns espetáculos dos quais Julieta participou. “Durante a pandemia, ela ficou oito meses na minha casa, montamos espetáculos, número de palhaços. Um deles foi América 2, que traz duas mulheres, que são as palhaças Miss Jujuba e Xexa, ambas latinas, que se encontram e viajam por todos países da América Latina. Falamos um pouco de cada país, de cada cultura”, recorda Vanessa Darmani, a palhaça Xexa, do Grupo Árvore Casa das Artes.
Atendendo a um pedido de Sophia Hernández, irmã de Julieta, Amora Gasparini, a palhaça Chabeli, do Grupo Lacarta, durante a manifestação foi a Miss Chabeli, com direito a faixa e tudo. O pedido para que as mulheres comparecessem assim foi para lembrar uma outra bandeira de luta de Julieta. Natural de um país no qual os concursos de miss têm uma grande popularidade, Julieta se opunha à imposição de padrões de beleza. “Em 2018, no Sesc Glória, Julieta apresentou um número onde se maqueia, come alface, para denunciar o sofrimento pelo qual as mulheres passam para alcançar esses padrões”, diz Amora.
O palhaço, que muitos conhecem como o artista que faz rir, não fala só de alegria, e foi isso que Julieta ensinou para inúmeros artistas do Espírito Santo. “Ela abriu meus olhos e o meu coração. Descobri que palhaço é cidadão, é agente da sociedade, é responsável pela reconstituição do tecido emocional dela. O palhaço não é alegre o tempo todo. O palhaço faz rir, o palhaço faz chorar, o palhaço ri, o palhaço chora. O palhaço está em meio à sociedade, não é só arte de entretenimento, é arte política”, diz Carlitos Cachoeira, o palhaço Cachoeira, do Grupo Lacarta.
Já na Praça do Papa, a repórter avistou um palhaço que abordava as pessoas com um pão caseiro, convidando para que se servissem com um pedaço. Quando o ofereceu, silenciosamente, à repórter, houve o seguinte diálogo:
– O que é isso?
– É o pãolhaço!
– E o que significa?
– Imaginemos!