Veronica Bezerra ressalta que programa de proteção a testemunhas do Estado é um dos primeiros no país
Um dos primeiros do país, o Programa de Proteção a Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítima do Espírito Santo (Provita-ES) completa 25 anos de existência e vai apresentar dados e fatos sobre sua trajetória em um seminário que acontece na próxima sexta-feira (2), na sede do Ministério Público Estadual (MPES), em Vitória.
Nesse período, o Provita-ES atuou efetivamente na proteção de aproximadamente 500 pessoas, alcançado 100% de êxito. “Em quase 25 anos, nunca perdemos uma vida e ninguém foi encontrado estando protegido pelo programa”, ressalta Verônica Bezerra, advogada e coordenadora de projetos do Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdício Barbosa dos Santos (CADH), entidade responsável pela gestão e execução do programa desde sua implementação no Estado, em 1997. Atualmente, são 47 pessoas sob proteção, a maioria, porque “denunciou milícias, facções criminosas e agentes do estado”, explica.
A forte atuação das organizações não governamentais é um diferencial importante do programa capixaba, ao lado de seu pioneirismo, junto com o estado do Pernambuco. “O Espírito Santo tem uma sociedade civil atuante que permite contar com uma rede de proteção potente. O papel do Condel [Conselho Deliberativo] também é diferenciado, pois é atuante e ainda há uma alternância na presidência, entre sociedade civil e poder público”, pontua a coordenadora.
As peculiaridades capixabas, infelizmente, são resultados de um contexto bastante negativo, que foi exacerbado a partir dos anos 1960, quando facções como o Esquadrão da Morte (grupo formado por policiais e ex-policiais que matavam as pessoas que estivessem cumprindo pena) começaram a chamar atenção da sociedade. “Nessa década, também, aconteceu o assassinato de Araceli Cabrera Crespo, em 1973, em Vitória, cujos acusados permaneceram impunes”, destaca Veronica Bezerra, em sua dissertação de Mestrado.
Houve ainda a Scuderie Detetive Le Cocq (organização paramilitar que utilizava recursos característicos de milícias e recebia contribuições empresariais) e a Operação Pena de Morte (OPM), integrada também por policiais e ex-policiais, e responsável pelo assassinato e desaparecimento de 100 ex-presidiários, já na década de 1990. A atuação desta última foi denunciada por um movimento de 280 presidiários.
Até o ano 2000, salienta a advogada, o Espírito Santo constava no Relatório sobre mortalidade por armas de fogo como um dos mais violentos, com taxas de homicídio muito maiores que a considerada suportável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 10 por cada 100 mil habitantes. Em 2000, a taxa no Estado chegou a 31,4 por 100 mil.
O trabalho acadêmico de Veronica cita alguns dos defensores de direitos humanos que tiveram suas vidas ceifadas no Estado entre os anos 1980 e 1990: Anastácio Cassaro (1986), Francisco Domingos Ramos (1988), Ana Angélica Ferreira (1989), Paulo Damião Tristão (1989), Maria Nilce Magalhães (1989), Verino Sossai (1989), Valdício Barbosa dos Santos (1989) e Padre Gabriel Felix Roger Maire (1989), José Maria Feu Rosa (1990), Itagildo Coelho (1990), Homero Reis (1990), Laurindo Buss (1990), Carlos Batista Freitas (1992), Jean Alves da Cunha (1993), Paulo Vinhas (1993), Célia Cerqueira Normanha e Paulo Normanha (1996) e Antário Filho (1997).
Essa forte presença do Estado, especialmente das forças policiais, como agente opressor dos direitos humanos por meio de assassinatos e outros crimes violentos, no entanto, é uma característica nacional, o que fez com que o Brasil adotasse um formato diferenciado do seu programa de proteção a testemunhas, vítimas e familiares, em que a execução é de responsabilidade da sociedade civil e não do governo ou organismos vinculados ao Sistema de Justiça e Segurança, como na Europa e outros países da América.
Foi a Lei Federal nº 9.807/1999 que elevou o Provita ao status de política pública de Direitos Humanos voltada para a segurança pública, com aporte de recursos e perenidade garantidos. “Exatamente nesse momento da história, a sociedade civil organizada deixava o seu lugar de denúncia e controle social, para assumir algo novo, a execução de uma política pública de alta complexidade”, sublinha Veronica.
No Espírito Santo, a efervescência da sociedade civil teve expoentes como o Fórum Campo e Cidade, a Campanha Nacional contra a Violência e a Impunidade, além de uma iniciativa da Igreja Católica, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória. Logo após o início da atuação do Provita-ES por meio do CADH, o Estado viu surgir, em 1999, em conjunto com o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o Fórum Reage Espírito Santo.
O Provita, ainda hoje, é mantido pela União e Estado, com a execução da sociedade civil organizada, por meio de convênios e termos de fomentos e colaboração específicos. No Espírito Santo, 83% da verba vêm do governo do Estado e 17% de Brasília.
Pedagogia da Proteção
O perfil do sujeito em proteção acolhido no Provita-ES em 2021 é pessoa adulta (homem e mulher), pardo, que cursou até o ensino fundamental, não tem renda fixa renda e é oriundo da periferia.
Os aspectos centrais do programa consistem na mudança sigilosa de residência, em todos os casos, em rigorosas normas de segurança, que incluem a criação da chamada “estória de cobertura”, o controle de comunicação, o anonimato, a alteração de nome completo, em casos excepcionais, e o monitoramento por equipes especializadas. Essas medidas, previstas na Lei 9.807/1999, são aplicadas caso a caso, a partir da elaboração de mapa de risco, e à luz da Pedagogia da Proteção.
Uma evolução importante da metodologia do programa, especialmente no Espírito Santo, ressalta Veronica, é a adoção da Pedagogia da Proteção, cunhada a partir da pedagogia da autonomia e da opressão de Paulo Freire, pelo doutor em Filosofia Paulo Cesar Carbonari, assessor especial dos programas de proteção no Brasil e membro da Coordenação Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil).
“A Pedagogia da Proteção garante uma política pública que prioriza o protagonismo da pessoa ameaçada. Objetivo é inseri-la em um novo espaço com segurança e também com acesso a direitos e serviços básicos, para que ela possa ser um ser político e ativo na sociedade”, afirma.
Violência permanece
Importante ressaltar que, apesar da eficiência do Provita-ES na defesa de testemunhas e vítimas, condição fundamental para combater a impunidade, o Espírito Santo continua sendo violento, principalmente contra a população negra e a população carcerária. Em 2015, as “masmorras de Paulo Hartung” chocaram o país, por meio de denúncia feita à Organização das Nações Unidas (ONU) pelo CADH por meio de entidades parceiras, como a Conectas e a Justiça Global.
Em 2020, a entidade executora do Provita-ES alcançou status consultivo na ONU, ampliando sua capacidade de denúncia internacional, como ocorreu em relação às vítimas do crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, relatada durante o Diálogo Interativo com o Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, ocorrido em junho passado.
O enfrentamento a esse cenário ainda tão adverso é enriquecido por outra busca importante voltada ao cuidado dos protegidos, que é a manutenção de vínculos afetivos antigos. Uma espécie de vazio afetivo, em função do relato de que o distanciamento de entes queridos é uma das principais queixas, já que o programa impõe normas que envolvem distanciamento das pessoas que compunham o círculo social mais íntimo, inclusive em chamadas de telefone.
“Busca-se a reconstrução da vida, tentando se resguardar os territórios existenciais, os laços familiares e comunitários, como forma de tentar minimizar as perdas existentes e inevitáveis nessas situações de ingresso no Programa de Proteção. Pode-se dizer que o programa procura melhorar cada vez mais essa questão afetiva dos protegidos, para que eles tenham menos vazios em sua vida nova”, explica Verônica.