Se a polícia falha, é preciso insistir; e isso não é papel só da vítima e da família, orienta pesquisadora
A violência psicológica que antecede o feminicídio isola a vítima e a vulnerabiliza ainda mais. Nesse contexto, muitas mulheres acabam se submetendo ao agressor, principalmente se são mães. Se mesmo assim, a vítima consegue se mover até uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência e pedir uma medida protetiva, mas tem sua voz silenciada pelo sistema policial e judiciário, a revitimização é tão grande que somente uma rede de apoio potente pode evitar o pior.
Esse é o cenário em que transcorreu o longo processo de violências psicológicas e físicas que culminaram no feminicídio da enfermeira Íris Rocha, cujo principal suspeito, o ex-namorado Cleilton Santana dos Santos, foi preso na manhã desta quinta-feira (18), na Grande Vitória, uma semana após o corpo de Íris ter sido encontrado numa mata na zona rural de Alfredo Chaves, na região serrana, com duas perfurações de arma de fogo no peito.
É o cenário também de muitos casos semelhantes que ocorrem no Espírito Santo e no Brasil, conforme explana a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Rosely da Silva Pires, onde coordena o programa de Extensão e Pesquisa Fordan: cultura no enfrentamento às violências. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais, Rosely lembra que o lema do Fordan é “Você não está sozinha”, uma frase recorrentemente dita pelas mulheres acolhidas pelo programa na região da Grande São Pedro, em Vitória, como forma de resumir o maior diferencial que elas percebem ao serem acompanhadas pelas pesquisadoras. Em 18 anos de trabalho na periferia e na universidade, afirma Rosely, o programa tem zero feminicídio entre suas acolhidas. O segredo, faz coro com as mulheres, está na rede de apoio, está em não deixar que nenhuma mulher em situação de violência doméstica fique sozinha, à mercê do agressor.
“As mulheres do Fordan dizem ‘não nos sentimos sozinhas’. Isso faz toda a diferença, porque a mulher que sofre violência se sente sozinha. E no caso da Íris foi mais grave, porque mesmo com todo esse medo, ela conseguiu ir na delegacia fazer a denúncia, o boletim de ocorrência. A delegacia é responsável de qualquer forma pelo feminicídio, uma vez que recebeu a denúncia. Se não gerou medida protetiva, isso é indicativo de que a Justiça não tem sido efetiva para proteger as nossas mulheres, como a gente tem falado tanto”, avalia.
A inação do sistema policial e judicial, afirma, teve efeitos imensos em Íris e seu agressor. Nela, a sensação de que de fato não tinha como se proteger e nele, a certeza da impunidade. “A ausência da polícia nesse momento fortaleceu o agressor e fragilizou ainda mais o psicológico da vítima”.
É num contexto tão opressor assim que a rede de apoio pode salvar a vida de uma mulher. “A sociedade precisa entender o lugar que ela ocupa na proteção à mulher, para evitar o feminicídio. Quando saiu a notícia de que encontraram o corpo, que era da Íris, houve uma movimentação social grande, uma repercussão imensa. Uma estudante de Mestrado da Ufes, uma pesquisadora, uma enfermeira .. Isso movimentou toda a sociedade, tanto os meios de comunicação, redes sociais, familiares, amigos, que absurdo! Os mandatos políticos, movimentos sociais, justiça por Íris! Mas se a gente tem essa mobilização social para a denúncia da violência, para a proteção dessa mulher, ela não teria sido assassinada. Porque o próprio agressor teria se sentido coagido”.
“A rede de apoio falhou”, constata. “Faltou um monitoramento. A família sabia que ela sofria violência, a universidade era o local onde ele vigiava ela, a Ufes precisa se atentar para isso também. Faltou alguém monitorar essa mulher. Além da denúncia, que qualquer pessoa podia ter feito, também podia ter monitorado a vida dela. Por que a gente tem zero feminicídio no Fordan? Porque as mulheres são monitoradas. A gente acompanha todos os dias, liga, manda mensagem, vai na casa … Dormiu bem? Cadê fulano? Chama a polícia, vai junto com a ela na delegacia, se preciso. Até a gente observar que elas estão em segurança novamente”, descreve.
“As ações penais referentes à violência domésticas são públicas e incondicionadas. Significa que qualquer pessoa pode fazer a denúncia da violência contra a mulher”, reforça a pesquisadora. E não são somente violências físicas, mas psicológicas, patrimoniais, todas as variadas formas de violência domésticas previstas na Lei Maria da Penha após sua atualização, em abril de 2023.
Outra característica do caso de Íris que é bastante recorrente e que precisa de atenção de toda a sociedade, é o fato dela ser mãe. Rosely cita a análise feita dos dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2021, que mostra a presença majoritária de mulheres com filhos em vários tipos de agressão física: em quase 80% das mulheres que sofreram esfaqueamento ou levaram tiro; 74% das que foram espancadas e sofreram tentativa de estrangulamento; 70,9% das que sofreram ameaça com arma de fogo ou faca; 65% das que sofreram batida, empurrão, chute.
“A mulher que tem filhos está em maior vulnerabilidade pela questão do medo. O agressor tem acesso à família, aos filhos dessa mulher. E tudo isso cria ao redor dela esse movimento de paralisação. O agressor vai isolando, minando as relações de amizade que ela tem. Ele passa a ser aquele que ao mesmo tempo cuida e violenta. E as pessoas ao redor vão se afastando, porque se sentem adoecidas, porque não conseguem tirá-la da violência, então abandonam. As amigas não aguentam mais vê-la se queixando e abandonam … A mulher vai se sentindo só”, descreve.
A alegada dependência emocional é outro ponto que precisa de melhor entendimento da sociedade, pontua Rosely. “Algumas pessoas ainda criticam que a mulher continue em contato com o agressor, como foi o caso da Íris, dizendo que ela tinha alguma dependência emocional em relação a ele. Confundem dependência emocional com violência psicológica. A violência psicológica é um crime, que cria dependência emocional”, explica.
“É preciso não desistir da vítima. A rede de apoio precisa funcionar. É isso que evita o feminicídio”, reafirma.