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‘Tenham piedade de nós!’

Fotos: Leonardo Sá
A cena não poderia ser mais simbólica. Palácio Anchieta, sede maior do poder político capixaba. Um grupo de quatro jovens militantes, negros, está na entrada com um documento importante em mãos para entregar aos governantes do Estado. Um documento que pede providência contra as mortes dos jovens Damião Reis, 22, e Ruan, 20, assassinados cruelmente no último domingo (25) com mais de 42 tiros no Morro da Piedade, Centro da Capital. Também políticas sociais e de segurança que façam cessar o genocídio em curso há anos nas periferias do Estado. 

Depois de alguma espera, ainda antes das 18 horas (horário comercial), uma servidora do Estado, branca, vem trazer a notícia de que não há ninguém, nenhuma autoridade, para recebê-los. Seria melhor que os jovens se dirigissem ao Palácio da Fonte Grande, na Rua Sete. Caso fossem rapidamente, talvez ainda conseguissem protocolá-lo como qualquer outro documento que se dá entrada no poder público estadual. Mais uma porta na cara de quem está acostumado com isso já há alguns séculos de exclusão. 
Diante de tanto descaso, ainda descendo a ladeira do Palácio Anchieta, Crislayne Zeferino, vice-presidente do Conselho Municipal de Juventude Negra de Vitória e integrante do Movimento Negro Unificado, não aguenta e desaba. Em pratos, ergue a voz para denunciar as mortes nos bairros pobres de Vitória e o descaso do governo, que sequer tem a dignidade de recebê-los.
“A gente está morrendo. Em dezembro de 2017, todo dia morria um jovem na favela. Na periferia de São Benedito, toda semana um jovem morria. E a gente vem aqui e é assim que somos tratados. Esse governo racista precisa cair. Vocês precisam ouvir a juventude negra!”, disse entre lágrimas Crislayne, que estava acompanhada de Myrella Frós, moradora da Piedade, Grasielly Cardoso, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado (Ufes), e de Luiz Augusto, da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes).
Tristeza e indignação

Esse não foi apenas o único episódio triste do “Ato Contra o Extermínio da Juventude Negra – Em Memória de Damião e Ruan”, conclamado por entidades do movimento negro, entre elas o Círculo Palmarino-ES e Movimento Negro Unificado, juntamente com moradores da Piedade e outras entidades da sociedade civil na área social e sindicatos. Os vários grupos e entidades se reuniram em Plenária e decidiram por realizar o ato. Todos pedem rigor do Estado nas investigações.

“A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. E essas mortes não são investigadas. Durante a greve da PM no ano passado; foram mais de 200 homens assassinados. Desse total, 70% jovens e negros e ninguém deu nenhuma satisfação da autoria. É muito sangue na mão do Estado. É muito crime naturalizado”, desabafou Wellington Barros, presidente do Conselho Municipal de Vitória de Direitos Humanos. 

Saindo por volta das 16 horas da Casa Porto de Vitória, centenas de manifestantes, a maioria vestida de preto, prantearam a morte dos jovens e também denunciaram o descaso do poder público com as periferias. O clima era de um ato fúnebre póstumo, mas também de solidariedade à família dos jovens. Alguns irmãos e irmãs de Damião e Ruan participaram. Uma delas carregava uma faixa com as fotos dos jovens. Sem querer se identificar, contou que a família ainda não conseguiu retomar à rotina. “É difícil aceitar que não poderemos mais ligar para eles, nem ouvir a risada deles, nem estar junto. É difícil também passar onde tudo aconteceu. Ainda estamos vivendo um grande trauma”, disse.  

O coordenador do Círculo Palmarino-ES, Lula Rocha, ressalta que a organização do ato é uma das formas de ação do movimento negro. Além de apoio à comunidade e à família, a entidade vai às ruas para tentar sensibilizar a sociedade e também cobrar das autoridades competentes a identificação dos responsáveis pelo crime. Segundo as estatísticas, de cada 10 pessoas assassinadas no Brasil, sete são negras. Lula ressalta que Damião e Ruan não são casos isolados, é uma realidade que se repete há anos nas periferias do Estado. 
Diversas lideranças fizeram uso da fala durante a passeata, todos emocionados. Professores, estudantes, trabalhadores, integrantes de movimentos de Direitos Humanos, militantes de diversas áreas. No meio da avenida Jerônimo Monteiro, houve espaço para que jovens negros declamassem poesias em que denunciam o genocídio do qual muitos dos colegas foram vítimas. Em frente ao Palácio Anchieta, houve também o surdo da escola de samba Piedade, luto, e uma roda de capoeira, homenagens aos jovens que emocionou os presentes. 
“Estamos de luto! É muita falta de respeito. Até quando isso vai continuar? Estamos muito indignados”, disse Nizete Marques, conhecida como Nega, presidente da escola de samba Chegou o que Faltava.
Jocelino Júnior, uma das vozes mais atuantes no campo social da Piedade, presidente Instituto Raízes da Piedade, tomou o microfone e fez um duro desabafo. A ONG oferece oficinas de artes, música e também trabalha a identidade e auto-estima das crianças do morro. 
“Damião era um militante social; ensinava a capoeira aos meninos das escolas de Vitória. Também era um jovem religioso e atuante na Pastoral da Juventude da Piedade. Hoje o morro desceu pro asfalto! Viemos dizer que somos famílias do bem, somos estudantes, professores, domésticas e garis. Somos mulheres guerreiras, como a mãe de Damião e Ruan. O que precisamos é de investimento do Estado, de mais oportunidades. Temos duas escolas na Piedade e só isso. Nosso lixo não é recolhido todo dia, as ruas estão esburacas e cheio de mato. Estamos há poucos metros desse Palácio Anchieta, onde todos os dias se gasta muito com lanches. Em nossa comunidade, tem criança que só come duas vezes por dia na escola porque em casa não tem comida! Tenham Piedade de Nós”, bradou Jocelino.  
O Ato Contra o Extermínio da Juventude Negra – Em Memória de Damião e Ruan” foi um mobilização pela vida, mas que também lembrou a morte. Como nos versos da música eternizada por Elis Regina, cantada ao longo da passeata, a rotina na Piedade foi alterada pelo medo, afinal, caíram os Reis Damião e Ruan.
 
“Nos dias de hoje é bom que se proteja
Ofereça a face pra quem quer que seja
Nos dias de hoje esteja tranqüilo
Haja o que houver pense nos seus filhos
 
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
 
Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo
Tenha paciência, Deus está contigo
Deus está conosco até o pescoço
 
Já está escrito, já está previsto
Por todas as videntes, pelas cartomantes
Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias
 
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada.Cai, o Rei de paus
Cai, não fica nada!”.

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