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‘Você não está sozinha’: Ufes cria aplicativo de enfrentamento ao feminicídio

Projeto é feito junto com mulheres negras de periferias em situação de violência, salienta professora Rosely Pires

“Você não está sozinha”. A afirmação é a tela de abertura de um aplicativo que visa ser uma ferramenta importante no enfrentamento ao feminicídio, especialmente o que atinge as mulheres negras de periferia, que correspondem a cerca de 85% dos casos.

A iniciativa é do programa de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Fordan – Cultura no enfrentamento às violências, por meio do edital Mulheres da Ciência, na Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), e celebra a maioridade do programa, que completa 18 anos de atividades com mulheres da região de São Pedro, em Vitória.

Coordenadora-geral do Fordan, a professora Rosely Pires ressalta que o aplicativo é construído junto com as mulheres em situação de violência que são acolhidas pelo programa, para que ele atenda de fato às necessidades e dificuldades que elas enfrentam no dia a dia para registrar o Boletim de Ocorrência (BO) e conseguir a Medida Protetiva de Urgência (MPU).

A frase de abertura, explica, surgiu da análise do sucesso que o Fordan obteve, durante a pandemia, na proteção das mulheres que acolhe. As 174 acolhidas passaram ilesas de feminicídio, morte e intubação por Covid, e seus filhos e companheiros tiveram zero reincidência em crimes. “Uma frase que a gente ouviu muito delas nesse período foi ‘eu não me sentia sozinha, o Fordan estava comigo”, relata Rosely, emocionada.

A coordenadora lembra que o Espírito Santo é um dos estados que mais nega MPUs para mulheres vítimas de violência e é também um dos estados onde o feminicídio cresceu em 2021. Na análise de dados oficiais e de pesquisa acadêmica internacional, Rosely chegou à hipótese que essas duas variáveis andam juntas e vitimam principalmente as mulheres negras e pobres, como noticiado em Século Diário. Daí a necessidade de ter essa população no centro da produção do aplicativo.

Mudança na Lei Maria da Penha

Ela ressalta também um projeto de lei aprovado nessa terça-feira (21) na Câmara dos Deputados, que dialoga com a proposta do aplicativo. O PL altera a Lei Maria da Penha para que as medidas protetivas de urgência sejam concedidas no momento da denúncia da mulher à autoridade policial. O texto, que já foi aprovado pelo Senado, segue para sanção presidencial, conforme noticiou o portal G1.

A proposta, de 2022, é de autoria da ex-senadora e atual ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB). Na justificativa, ela argumenta que, muitas vezes, a concessão de medidas protetivas de urgência tem se baseado em “imposições descabidas”.

“Exige-se a correspondência criminal dos atos de violência doméstica e familiar; exige-se prova cabal de crime, em vez de se respaldar a narrativa da mulher, valendo lembrar que tratamos, aqui, de medidas de proteção, e não de sanções penais”, disse, acrescentando críticas ao entendimento de tribunais de justiça sobre a legislação. Em 2015, salientou a então senadora, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu um “entendimento equivocado” de que os juízes deveriam analisar se a violência contra a mulher foi ou não uma violência baseada no gênero para justificar a aplicação da Lei Maria da Penha.

Política pública

A equipe do aplicativo do Fordan/Fapes tem como meta maior que ele seja transformado em uma política pública estadual e, futuramente, nacional, para “salvar a vida das mulheres”, como enfatiza Rosely Pires.

Uma apresentação do protótipo do aplicativo será feita neste sábado (25) na Ufes, para parceiros do projeto. Entre eles, a deputada estadual Iriny Lopes (PT), presidente da Procuradora da Mulher da Assembleia Legislativa; o senador Fabiano Contarato (PT); a União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro); o Fórum Estadual de Mulheres Negras; o Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Espírito Santo (Nudem/DPES); e a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP).

Confira a entrevista que ela concedeu com exclusividade para Século Diário:

Ana Salles/Ales

Por que criar mais um aplicativo de socorro à mulher vítima de violência? O que diferencia o aplicativo do Fordan/Fapes dos demais?

O aplicativo Fordan/Ufes tem uma dimensão de funcionalidade. Tivemos acesso a alguns aplicativos, e quando foram submetidos às mulheres acolhidas pelo Fordan, não atendiam nem às necessidades nem às dificuldades apresentadas por elas. O aplicativo que nós estamos produzindo, com apoio do edital Mulheres na Ciência da Fapes, nasce a partir das dificuldades e necessidades da mulher negra e de periferia.

Como garantir que ele vai atender às necessidades das mulheres negras da periferia da Grande Vitória?

Por ele ter essa funcionalidade de ser produzido junto com elas e com movimentos que socorrem as mulheres, a gente sabe que vai nesse sentido. E também porque as parcerias que formamos, para direcionar os dados produzidos pelo aplicativo, vão buscar dar prioridade à mulher negra e de periferia.

A apresentação do aplicativo marca a primeira fase do projeto. Em que consiste essa fase? E quais são as próximas etapas, até a conclusão, em dezembro?

A apresentação é de um protótipo que durante três meses vai sofrer alteração. Vai ser monitorado por um grupo de mulheres do Fordan que estão na periferia e sofrerem violência e submetido à Defensoria Pública, à Procuradoria da Mulher, à Unegro, ao Fórum Estadual de Mulheres Negras, a algumas pesquisadoras da Ufes, à Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP) e à equipe do Fordan.

A partir daí, a gente vai procurar entender que modificações esse aplicativo precisa ter para atender ao seu objetivo. Não em relação à interface dele com as mulheres que irão fazer seu cadastro e as denúncias, porque ele foi produzido com elas, mas como é que as denúncias irão chegar, como elas serão priorizadas enquanto denúncia de mulher negra e de periferia.

Nas próximas etapas também vamos trabalhar na construção e sistematização do banco de dados. Porque a universidade, que é a gestora do aplicativo, recebe esses dados e vai estruturá-los. A partir dessa estrutura, a gente consegue entender quais são os dados que chegam pelo aplicativo e que vão mapear a violência da mulher negra e de periferia. E só assim a gente consegue pensar políticas públicas de acolhimento à vítima e de enfrentamento à violência, porque teremos os dados gerados pelo aplicativo que irão mostrar qual é a cor, a classe social e a orientação sexual dessa mulher que está sofrendo violência. Qual é a especificidade dessa mulher? Qual é a dificuldade que ela tem para fazer a denúncia, quando ela solicita medida protetiva, mas não quer a polícia, porque se a polícia entra no morro, ela tem problema com o tráfico e etc.

A violência contra a mulher negra de periferia no território tem uma complexidade que a violência na classe média geralmente não tem.

O Fordan tem uma análise de dados oficiais que mostram que o ES é um dos estados que mais negam MPU às mulheres vítimas de violência e que, assim como as demais regiões que também tem um percentual maior de negativas, aqui o feminicídio é também mais elevado, sendo que a maior parte das mulheres assassinadas são negras. Para o Fordan, está bem evidente que as mulheres negras e pobres são as que mais sofrem com negativas de MPUs e, consequentemente, com o crime de feminicídio, certo?

Essa pesquisa sobre indeferimento de medida protetiva vem dos dados do documento do CNJ e do Instituto Maria da Penha. Traz dados importantes, mas também um alerta sobre ausência de dados muito importantes. Os dados que ela traz: os estados onde houve aumento de feminicídio é onde houve negativa maior de medidas protetivas e em estados onde houve pouco indeferimento de MPU, teve decréscimo de feminicídio. Quando a gente cruza esses dados com aqueles sobre qual mulher está morrendo de feminicídio, vê que são as mulheres negras. Há uma hipótese, quando faz esse cruzamento, de que existe uma linha direta entre negativa de medida protetiva, aumento de feminicídio e morte de mulheres negras.

Um dos objetivos do banco de dados do aplicativo é mostrar essa realidade às autoridades da Segurança Pública e Judiciário, como delegacias, Ministério público, Tribunal de Justiça e CNJ?

Um dos objetivos do aplicativo é produzir dados e com eles entender a realidade, como propõe todo o trabalho do Fordan pelo método indiciário, a complexidade da violência contra a mulher negra de periferia e a partir daí pensar políticas públicas que deem conta dessa complexidade. E disponíveis para toda as autoridades, segurança pública, judiciário, delegacia. Não queremos sobrepor o aplicativo a instituições de acolhimento de vítimas de violência que já existem. É uma atividade que vem para somar ao que já existe e enfrentar um problema que até agora não conseguiu ser resolvido, que é a morte numerosa de mulheres negras de periferia.

Quais são os outros parceiros do Fordan nesse projeto?

Defensoria pública, parceria antiga, com advogadas para as mulheres pobres, que vai entrar com a possiblidade de receber os dados, as denúncias, as solicitações de medidas protetivas. Temos a sociedade brasileira de psicanálise, que faz o acompanhamento emocional e psicológico dessas mulheres. A presidente da Procuradoria da Mulher, que é a Iriny Lopes, que está nos ajudando a pensar o aplicativo como política pública, e o senador Fabiano Contarato, para entender como essa política pode ter uma abrangência maior, uma vez que o processo de morte da mulher negra de periferia tem se dado não só no Espírito Santo, mas também em outros estados do Brasil.

De que forma o aplicativo, que é um produto da Ufes, pode se tornar uma política pública e se expandir para todo o Espírito Santo e Brasil?

Com essas parcerias, uma vez que o aplicativo for testado e tiver a efetividade que nos propomos que tenha, tiver redução na morte das mulheres, for uma ferramenta importante para esse enfrentamento, a gente pode pensar na expansão do aplicativo para além do Espírito Santo, que ele tenha uma abrangência mais nacional.

Como o aplicativo vai funcionar, o que a mulher vai encontrar nele, em termos de informações e serviços?

O aplicativo é um parceiro da mulher. A tela que abre é de cor lilás, que é a cor símbolo do combate à violência contra a mulher, e com o título “você não está sozinha”. Ela faz o cadastro dela, tem informações importantes sobre pensão alimentícia, que tem sido uma das grandes demandas das mulheres negras de periferia acolhidas pelo Fordan, então que documentos precisa encaminhar, como é feita a solicitação, e ela tem informações variadas, não necessariamente vai fazer a denúncia no momento.

A partir do momento que ela passa a ter contato com esse aplicativo, só ela consegue abrir, porque tem o CPF dela, senha, como se fosse aplicativo de banco, ali com os dados dos filhos, da residência…uma vez que ela sofre violência, ela tem um botão onde vai fazer a denúncia e solicitar a medida protetiva.

É uma possiblidade de fazer tudo isso sem precisar ter dinheiro para se deslocar até uma delegacia, sem precisar repetir o fato para uma outra pessoa fazer a solicitação opor ela, é uma oportunidade importante de protagonismo da mulher negra de periferia. Porque nós temos muitos relatos que quando vão fazer boletim de ocorrência, falam coisas que não são contempladas no texto da forma como ela fala.

Por exemplo, temos um caso de mulher LGBTQIA+, ela disse que está sofrendo homofobia de um pastor, e o delgado anotou conflito familiar, porque o pastor é uma pessoa da família, mas não é conflito de família, é homofobia. A gente teve que entrar no caso para poder manter um BO que garantisse a denúncia dela de homofobia.

Então uma das questões serias quando não é a mulher que faz o boletim, é que quem escreve às vezes não contempla corretamente as palavras, a narrativa daquela mulher. No caso do aplicativo não, é voz dela que é transformada em texto, mesmo que ela não saiba ler nem escrever corretamente, e que é emitido para os lugares onde vai ser feito o acolhimento. Então nesse sentido, o aplicativo vai funcionar para ela tanto para denúncia quanto para informações e serviços.

Pode-se dizer que o objetivo maior desse trabalho, que começou há 18 anos com os primeiros passos, o sonho a ser alcançado, é salvar a vida das mulheres, principalmente as mulheres negras e pobres?

Há 18 anos o Fordan trabalha na periferia para salvar a vidas das mulheres, de seus filhos, suas famílias. Lembrando que o racismo é estrutural, está na base das instituições. Por isso, quando a gente pensa num aplicativo para salvar a vida da mulher negra, tem que entender que ele também tem que ser construído como uma política pública antirracista, então o aplicativo quer ser uma política pública de enfrentamento ao racismo também.


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https://www.seculodiario.com.br/justica/repercussao-nacional-da-misoginia-do-tjes-vai-ser-muito-ruim-alerta-professora-da-uff

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