Fotos: Sindialimentação/ES
Uma constante e incansável luta marca a trajetória dos trabalhadores do setor alimentício nas últimas décadas no Espírito Santo. Os momentos mais importantes dessa história são contadas no livro Trilhas: a construção da identidade e a memória social dos trabalhadores em alimentação do Espírito Santo, de autoria da jornalista Déborah Sathler, que será lançado na sexta-feira (6), às 13h, no auditório do Sindicato dos Trabalhadores em Alimentação do Espírito Santo (Sindialimentação), na Glória, em Vila Velha.
O horário de lançamento se deve justamente ao momento de intervalo de almoço para permitir a participação de trabalhadores da fábrica da Garoto, que protagonizam muitas das principais lutas da categoria. No dia 13 de março, às 16h30, a obra também será lançada no Cine Metrópolis, com presença da vice-reitora da Universidade Federal do Estado (Ufes), Ethel Maciel, buscando repercutir o resultado também no meio acadêmico para engajar alunos de diversos cursos nas lutas.
Não à toa, o livro vai ser lançado nas proximidades do Dia Internacional da Mulher. A luta da categoria é historicamente comandada por mulheres no Estado, tendo ficado conhecida nacionalmente como o “sindicato das meninas”. Questões como trabalho feminino e assédio são presentes na publicação. “Na fábrica havia uma cultura patriarcal, de poder, uma herança de assédio enraizada na empresa. Quantos relatos de assédios ouvi dentro da fábrica, mas nem sabia o que era assédio”, diz Cleo Sezini, trabalhadora aposentada da Garoto.
Eu sempre achei estranho aquele tratamento no ambiente de trabalho, dos chefes superiores, homens mais velhos com as jovens funcionárias, revistas masculinas em mulheres. Na hora de pegar o peso e do serviço pesado éramos todos iguais, homens e mulheres, mas na hora da relação chefe e empregado, as relações eram bem diferentes. Um universo machista, as mulheres grávidas não tinham paradas, pausas e eram demitidas. As que ficavam lesionadas não tinham seus direitos”.
A obra é fruto de um trabalho que tem como base a história oral, a partir da entrevista com 25 pessoas importantes nesse processo, desde trabalhadores da ativa, aposentados, advogados e outras pessoas que tiveram relação com eles ao longo de mais de três décadas de lutas. Também fez parte da pesquisa um levantamento bibliográfico para entender as questões fundamentais para pensar o mundo do trabalho ,assim como o amplo acervo do sindicato com imagens e informações. “Quis fazer um mergulho nesse universo de chão de fábrica, desconhecido pra mim até então. Muitas relatavam histórias de dor, lesões, cerceamento de direitos”, diz Déborah.
A história do sindicalismo no setor começa em 1960, com a criação do Sindicato dos Trabalhadores de Cacau e Balas de Vila Velha, porém este era controlado pela diretoria da empresa Garoto, o que obviamente travava os anseios dos trabalhadores. Estes só vão passar a controlar a entidade no ano de 1986. A participação social é ampliada a partir da abertura política do país com o fim da ditadura. Depois transformado em Sindialimentação, com a incorporação de outros setores, a luta não demora a eclodir no sindicato.
Em 1988, num caso emblemático, o sindicato consegue visibilizar e denunciar nacionalmente na imprensa a demissão de trabalhadoras grávidas da Garoto, na contramão do que vinha sendo construído na nova Constituição Federal. A comunicação sindical se destacou também desde 1985, com a criação do Jornal Consciente ainda na campanha das primeiras eleições democráticas do sindicato. Na porta da fábrica, o impresso circulava em paralelo com jornais oficiais da empresa, trazendo muitas vezes visões destoantes.
Outra campanha forte e que marca a luta das trabalhadoras mulheres do setor é a reivindicação pela construção de uma creche para as trabalhadoras da Garoto, permitindo humanizar o trabalho e aproximar mães e filhos. Na comemoração dos 60 anos da empresa, em 1989, as trabalhadoras constroem um varal de fraldas como forma de protesto, conquistando tempos depois a reivindicação.
Num outro momento histórico, em julho de 1994, em meio à negociação por reajuste anual para a categoria, sete mulheres lideram a paralisação das linhas de produção da fábrica da Garoto. Em outro episódio marcante, os trabalhadores realizaram protestos durante a Corrida Garoto (posteriormente chamada de Dez Milhas Garoto).
Ao longo dos anos, o sindicato organiza protestos contra demissão de trabalhadores da Garoto e de outras empresas como Chocolates Vitória e Antarctica, campanhas salariais para a categoria, reivindicação de plano de saúde integral, além da realização de cursos de formação e outras atividades.
Mas a obra apresenta um sindicalismo que não se preocupava apenas com a classe que representa, mas também com outras questões que envolvem seu entorno e a sociedade em geral, apoiando atividades comunitárias, campanhas contra a fome e em apoio a indígenas e sem terra. Também se articulou internacionalmente por meio do Projeto Cacau, que funcionou durante os anos 90 articulando trabalhadores de diversos países que atuavam na cadeia do cacau e chocolates. “O Sindialimentação do Espírito Santo tornou-se referência nacional e internacional na luta pela saúde do trabalhador, foram apresentadas as ações preventivas que desenvolvíamos aqui nas fábricas de chocolate da Áustria, Alemanha, Holanda e Hungria”, conta Mara Lima, jornalista e trabalhadora da Garoto.
A nível internacional, o sindicato capixaba também se tornou referência na luta pela saúde do trabalhador, especialmente em relação a Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Um dos casos emblemáticos é o de Neusir Brito, ex-funcionária que mantém uma ação judicial contra a Garoto há mais de 20 anos. A pressão e repetitividade do trabalho e pouca atenção da empresa geraram grande danos. “Perdi os movimentos da mão, fiquei dependente de outras pessoas, quem não passa por isso não sabe o que é carregar esse peso para o resto da vida, uma mulher jovem, trabalhadora, perder a capacidade de trabalho. Custou a minha vida e o problema que tenho toma um tempo enorme da minha vida para me reabilitar”, contou.
O livro aborda também outras situações relevantes para a categoria e sua luta, como a unificação dos sindicatos de bebidas, massas e cacau para criar o Sindialimentação, refletindo sobre as vantagens e dificuldades para estabelecer a unidade. Também lembra com depoimentos e imagens a novela da venda da Garoto para a Nestlé e a posição, participação e mobilização dos trabalhadores em meio ao imbróglio jurídico, incluindo assembleias, manifestações, abaixo-assinado, e o abraço simbólico da fábrica.
Ao final, Trilhas traz também algumas reflexões contemporâneas, pensando o legado da luta dos trabalhadores, a consciência de classe e os desafios do sindicalismo hoje, incluindo os impactos das reformas Trabalhista e da Previdência.