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A luta dos Tupinikim por revitalizar uma língua morta pelo colonialismo

Educação escolar e grupos culturais são estratégias para retomar o tupi nas comunidades de Aracruz

Mesmo depois da invasão colonial, o tupi foi a língua mais falada por séculos no Brasil, tendo sido proibido em 1758 por meio de decreto do Marquês de Pombal. Ao longo do tempo, o chamado Tupi Antigo, falado pelas etnias nativas, foi substituído como língua dominante no país pela chamada “língua geral” ou nheengatú, uma derivação do tupi, que só depois seria suprimida pelo português como língua oficial do País.

O nheengatú segue sendo falado por algumas milhares de pessoas em comunidades sobretudo ao redor do Rio Negro, na Amazônia. Mas o Tupi Antigo, que foi conhecido no início da colonização como língua brasileira, é considerada uma “língua morta”, que não tem mais falantes nativos. Porém, por ter sido registrada gramaticalmente, pode ser estudada e aprendida. É isso que fazem os Tupinikim em Aracruz, norte do Espírito Santo, numa tentativa de “revitalizar” a língua originária de seu povo.

“Um povo, uma raça ou etnia é reconhecido por sua diferença, seja na forma de se vestir, ou na forma de suas celebrações culturais, por sua religião ou língua. Para nós, povos Tupinikim, que fomos obrigados a deixar de falar sua língua materna, a revitalização da língua tupi é um fortalecimento da nossa identidade étnica e cultural, ou seja, uma forma de sermos reconhecidos e de até mesmo nos reconhecermos como pertencentes a um grupo étnico tão importante para a formação do País”, explica Paulo Tupinikim, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), que já atuou como professor da língua nas escolas de Aracruz.

Os Tupinikim de Aracruz são os últimos remanescentes da etnia que foi a primeira a ser contactada pelos portugueses ao chegarem no território hoje chamado Brasil, embora a língua tupi fosse compartilhada com diversos outros grupos étnicos do litoral brasileiro.

Pedagogo e mestre em Linguística pelo Museu Nacional/UFRJ, Jocelino Tupinikim conta que se estima que o tupi era conhecida nas comunidades de Aracruz até por volta da década de 1960, tendo havido pessoas falantes vivas até os anos de 1980. Muitos que hoje habitam as aldeias lembram dos pais, avós ou outros familiares falando ou cantando em língua “diferente”, embora não tivessem passado adiante o conhecimento sobre o tupi.

“Minha bisavó foi uma das últimas falantes, mas dizia que não ia ensinar porque tinha medo. Tinha passado pelo processo de medo e vergonha, criou-se essa ideia do caboclo, como forma de esconder a identidade indígena, que não era uma coisa bem vista”, conta ele, um dos quatro professores que hoje atuam nas aldeias ensinando tupi nas escolas.

Jocelino explica que a desaparição da língua vai se dar justamente com a chegada de projetos industriais: primeiro a Cofavi entre os anos 40 e 60, que destrói grandes extensões de Mata Atlântica para produção de carvão vegetal, processo continuado com a chegada da Aracruz Florestal e Aracruz Celulose [ex-Fibria e hoje Suzano], a partir dos anos 1960, impondo o extenso monocultivo de eucalipto e a instalação de plantas industriais.

Deserto Verde: plantios de eucalipto destruíram a Mata Atlântica. Foto: Leonardo Sá

Perdendo o território e as condições de reprodução da vida, vendo a cidade e a indústria chegarem mais perto, intensifica-se o processo de impelir os Tupinikim a buscar trabalho fora da aldeia e encontrar na ocultação da identidade indígena uma alternativa para driblar o preconceito. Já no final dos anos 1970, no entanto, começa um processo de articulação das comunidades Tupinikim nativas dali e os Guarani, que haviam chegado na década anterior em torno da luta pelo território, que deu origem a uma primeira autodemarcação das terras e outras lutas até os anos 2000 para garantir o reconhecimento do atual território compartilhado entre as duas etnias em Aracruz.

Reaprendendo a língua

Os Guarani falam sua língua nativa até hoje como língua principal. Originária da mesma matriz, o tronco tupi-guarani, os idiomas das duas etnias apresentam grande proximidade, o que também pode ser um fator positivo para o aprendizado do tupi nas aldeias do município.

O processo de revitalização do Tupi Antigo é bastante recente, tendo como primeiro marco um seminário sobre educação escolar indígena, quando os Tupinikim manifestam o interesse em também trabalhar a questão linguística. Em 1999, o linguista Eduardo Navarro, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores especialistas em tupi, participa de um seminário em Aracruz e ajuda a implementar um processo de capacitação de professores para ensinarem a língua nas escolas, que têm as primeiras aulas a partir de 2007, fazendo parte da grade curricular e contando com quatro professores da própria comunidade, sendo dois deles com mestrado na área.

O tupi é trabalhado na Educação Infantil e Ensino Fundamental 1 e 2 e havia iniciado os trabalhos este ano no Ensino Médio, com a inauguração da primeira escola indígena para atender estas séries, semanas antes das paralisações por conta da pandemia do novo coronavírus.

“A ideia de trabalho da língua dentro das aldeias começa pela base, primeiro no trabalho com as crianças, trabalhando a oralidade, musicalidade, traduzindo, ensinando palavra por palavra”, conta ÎybatãTupã Tupinikim, um dos professores atuantes.

Apesar de não ser mais falado, o Tupi Antigo tem importantes registros escritos, como sua primeira gramática, escrita pelo padre jesuíta José de Anchieta, hoje reconhecido como santo pela Igreja Católica, além de outros estudos até a época contemporânea.

A partir daí, aos poucos os professores vão utilizando a criatividade, a produção coletiva junto com os alunos e parcerias com outros órgãos para desenvolver materiais didáticos para auxiliar o aprendizado e tornar o ensino mais interessante para as crianças.

Um desses materiais, que está em processo de finalização, é o livro Îande nhe’engara îandé ranga: îandé rekobé  (Nosso canto, nossa alma: nossas histórias), com canções em português traduzidas para o tupi em sala de aula. “Foram vários encontros até decidirem trabalhar com músicas tradicionais Tupinikim, essas que relatam a história de luta do povo. Iniciou-se então um trabalho de pesquisa, em que as crianças, junto com os professores, foram em busca dessas músicas com os anciãos, e os componentes da banda de congo Tupinikim”, conta Flávia Quiezza, uma das professoras que têm se dedicado na produção de materiais didáticos. 

Livro artesanal bilíngue produzido por estudantes de Aracruz. Foto: Flávia Quiezza

Segundo ela, diferentes textos são produzidos pelos alunos, consultando dicionários e com apoio dos professores, muitos relacionados a relatos do cotidiano. Alguns são transformados em livros artesanais e ficam disponíveis nas bibliotecas das escolas, sendo utilizados nos processos de ensino em várias séries.

Outro destaque são os jogos de tabuleiro produzidos pelos próprios alunos. “Esses jogos trabalham em Tupi diferentes vocabulários, músicas, produção e tradução de frases que deve ser feita oralmente. Esse trabalho ajuda os alunos interagirem entre si e praticar a oralidade, pois muitos são tímidos e na hora da brincadeira perdem um pouco da timidez”, explica Flávia.

Os professores são unânimes, porém, no entendimento de que só a escola não basta para o processo de recuperação linguística. “Mesmo a língua fazendo parte do currículo escolar, a escola sozinha não será capaz de revitalizá-la ou reconstruí-la, precisa-se do envolvimento de todos os interessados, basicamente família, líderes e comunidade”, pontua Flávia Quiezza. “Se o tupi não é falado no convívio familiar e comunitário, resulta então mais difícil para os alunos aprendê-lo, pois não é fácil ensinar uma língua que já não é mais falada”.

As iniciativas culturais tentam aos poucos introduzir a língua e expressões delas. Na música, o grupo Tupinikim de rockongo Kaymuan possui algumas canções em tupi. Algumas das igrejas evangélicas da região também realizam cânticos na língua nativa (ouça aqui), seja por meio de traduções ou composições em tupi, contribuindo para familiarizar o idioma entre os adultos que não tiveram o contato escolar com a língua.

Na aldeia Caieiras Velhas, há diversos grupos ligados à identidade local com atividades como congo, dança, grupo de guerreiros e de mulheres, que se organizam em torno da tradição e identidade Tupinikim e possuem como grande espaço de expressão a Noite Cultural, com periodicidade mensal.

Outro entusiasta da revitalização do Tupi é Tiago Matheus, escritor e cineasta de 31 anos. Nascido na aldeia de Comboios, ele passou a se interessar pela língua depois de fazer um curso básico. Não conseguiu fazer o segundo curso mais avançado, pois haviam poucas vagas, mas seguiu estudando.

Ajudou a ensinar lideranças locais, que diante do contato com outras etnias em encontros e reuniões, viram a necessidade de conhecer mais a língua. Também canta e faz versões de músicas em tupi. Em seus livros e filmes, utiliza expressões em tupi, como em Bravura e Coração, lançado há algumas semanas.

Também utilizando o nome em tupi T-Kauê, Tiago costuma transmitir alguns dos aprendizados na língua de seu povo em seu canal no YouTube, onde estão seus filmes realizados de forma independente e buscando retratar a cultura, identidade, e lendas indígenas.

Próximos passos

Embora em pouco tempo os Tupinikim já tenham construído importantes avanços no processo de revitalização da língua, todos apontam muitos desafios a enfrentar.

Não estão isolados, pois outros povos indígenas no Brasil se encontram no mesmo processo, sobretudo na região Nordeste, sendo algumas delas também estudando o Tupi Antigo. “Agora o grande desafio é fazer com que as nossas escolas e nossas aldeias sejam bilíngues, falantes de fato da língua tupi, pois nem todos da aldeia fazem adesão a isso”, aponta como horizonte Paulo Tupinikim, da Apoinme.

Trazer o tupi para o dia a dia é um desafio que compete com a língua dominante, que está em todas partes, desde a televisão até as placas informativas. Em Caieiras Velha, é possível encontrar o tupi no nome de igreja, loja de gás e padaria. Jocelino destaca também que algumas famílias têm batizado os filhos e também os animais domésticos com nomes em tupi, mostrando a intenção de voltar a utilizar a língua. No grupo de arqueiros, cada participante recebe um nome em tupi, assim como o congo também vem trabalhando músicas no idioma ancestral.

Os professores e especialistas apontam que é preciso ampliar a formação de professores e de materiais didáticos em Aracruz. Jocelino aponta as próprias limitações do sistema escolar tradicional, que demanda o desafio de construir uma educação realmente libertadora. Os profissionais reconhecem que o processo escolar é fundamental, mas também que é preciso ir além e construir políticas linguísticas mais amplas que permitam avançar em diversos setores e envolver todas as comunidades.

Congo e músicas tradicionais são estratégias para usar a língua tupi. Foto: Rogério Medeiros

O panorama nacional parece ser pouco favorável. De imediato, os efeitos do coronavírus paralisam as ações e o governo federal tem sido considerado avesso aos interesses e demandas dos povos indígenas. As universidades públicas, que têm sido parceiras importantes, também sofrem com a redução de verbas.

Para Jocelino Tupinikim, a língua pode ser uma arma poderosa e até uma estratégia de guerra. Se hoje o tupi é considerada uma língua morta, não seria exagero dizer que foi assassinada. Foi por estratégia que os colonizadores logo aprenderam o tupi para efetivar o processo de conquista. E também por isso, depois Pombal proibiu que o idioma nativo fosse falado.

O professor e ativista acredita que na difícil conjuntura política atual para os povos tradicionais, falar uma língua própria, que só seu grupo entenda, também pode ser uma ferramenta estratégica nos processos de luta que ainda podem estar por vir para os Tupinikim.

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