O relatório final da comissão de apuração de denúncias de fraudes nas permissões de táxi de Vitória, instalada em agosto de 2015 pela prefeitura, é uma peça robusta com potência suficiente para implodir a arquitetura do esquema de fraudes nos contratos de permissão dos táxis da capital capixaba, estruturada pelo suor de defensores, omissão de permissionários e vista grossa do poder público.
Uma arquitetura frágil, no entanto, muito bem resguardada. O relatório da comissão da Secretaria de Transportes, Trânsito e Infraestrutura Urbana (Setran), formada por Minervino de Oliveira Neto, Robson Victorino e Fábio Nogueira Felsky, é uma bomba de obviedades, cuja conclusão escancara aquilo que já estava aberto, sobretudo nas praças, ruas e avenidas da capital capixaba: o serviço de táxi de Vitória é executado em pelo menos 80% por defensores. Permissionários não trabalham.
“Pelo exposto, diante de toda apuração e pelos esclarecimentos prestados, a Comissão conclui que há indícios de irregularidades no serviço de transporte de passageiros em veículo de aluguel a taxímetro do Município de Vitória, que poderão ser aferidas em Processo Administrativo no bojo do qual seja assegurado aos acusados o direito ao contraditório e ao devido processo legal”, afirma a conclusão do relatório, a cujo teor Século Diário teve acesso.
A comissão levantara inúmeros fatos suspeitos: seis placas registradas em um único endereço em Jardim Camburi; o permissionário que mal sabia o nome de seus defensores; o outro que admitiu que não trabalhava por ter outra fonte de renda; inúmeros casos de procuração sem data de validade; casos de sublocação de placas; indícios, por fim, de formação de frotas particulares de táxi.
Contudo, a mesma peça expõe a prefeitura a contradições, reforçando a suspeita de que a cúpula da Setran resguarda o esquema dos táxis.
O relatório final da comissão foi encaminhado no dia 20 de janeiro deste ano ao secretário de Transportes, Josivaldo de Andrade. Mesmo diante de indícios convincentes de irregularidades, o secretário toma medidas protelatórias. No dia 15 de fevereiro, envia ofício ao então subsecretário de Transportes, Fernando Repinaldo, solicitando apuração das denúncias do documento.
O dia 7 de março é sintomático. Aqui Josivaldo refreia novamente o ritmo da investigação ao remeter novo ofício, desta vez para a Procuradoria Geral do Município (PGM), solicitando análise e parecer sobre possível instauração de Processo Administrativo. Mas no mesmo dia 7, o secretário compareceu à sessão da CPI da Máfia dos Guinchos, na Assembleia Legislativa, que, na ocasião, apurava denúncias de abordagens abusivas de agentes da guarda municipal a taxistas de outros municípios. Questionado se todos os táxis de Vitória eram defendidos por permissionários, Josivaldo assegurou que sim. Depois, demonstrou hesitação.
Na certeza ou na dúvida, o certo é que há mais de um mês o secretário tinha em mãos o resultado final de auditoria produzida por sua secretaria apontando na direção contrária. Com o ofício à PGM, Josivaldo disse uma coisa; aos microfones da CPI, garantiu outra.
As investigações na Prefeitura de Vitória começam em 2014, com uma denúncia anônima de quatro parágrafos, que reprova a conduta de personagens como Carlos Agne, o maior gestor de placa de Vitória, com cerca de 25; denuncia que são os defensores que levam o serviço; as arbitrariedades da diária; a sublocação de placas. A auditoria foi instalada pela Controladoria Geral do Município (CGM) para apurar fraudes em contratos de permissão de táxis por solicitação da Setran.
Um dos casos levantados é o registro das permissões 056, 0142, 0143, 0155, 0216 e 0295 em um mesmo endereço em Jardim Camburi, na Rua Raul Oliveira Neves, 265. Todas as placas orbitam em torno de uma figura conhecida nas praças, uma espécie de “grande gestor” em ascensão: Alex Sandro Muller Helmer.
O taxista foi o representante do sindicato da categoria na comissão de licitação do certame que distribuiu 108 placas em Vitória. Rosiane de Oliveira Puppim, apontada como esposa de Alex, foi a primeira colocada na concorrência. Alex Muller é próximo do vereador Max Da Mata (PSD) desde a campanha de 2012 e passou a frequentar a Setran durante a gestão do vereador à frente da pasta. A licitação foi elaborada durante a gestão de Max. Na última segunda-feira (11), a CPI da Máfia dos Guinchos, na Assembleia Legislativa, anunciou que irá requerer ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) a suspensão da licitação.
Entre 2014 e agosto de 2015, a CGM despachou reiterados ofícios de cobrança de informações à Setran. Foi ignorada. No dia 18 de agosto, o jornal A Tribuna publica a reportagem sobre o “barão do táxi”, cuja frota particular lhe renderia pelo menos R$ 100 mil mensais. A matéria acende o alerta na prefeitura e Josivaldo exibe iniciativa, instalando, ainda em agosto, a comissão de apuração da Setran.
O secretário receberia do presidente da comissão, Minervino de Oliveira, pelo menos dois pedidos de prorrogação de seus trabalhos, inicialmente determinada a durar 30 dias. Os dados, fatos, casos e indícios levantados e apurados consumiam cada vez mais tempo. No dia 28 de agosto, a comissão delibera fazer levantamento de permissionários para entrevista e elaborar questionário para levantamento junto aos mesmos.
Em 3 de setembro, a comissão determina que a metodologia de investigação seria por amostragem. Foi definido um grupo de 17 permissionários para entrevistas, divididas em dois blocos. Os permissionários do primeiro bloco eram suspeitos de nunca terem trabalhado como taxista; os do bloco 2, de deterem várias placas e também não trabalharem como taxistas. Os nomes surgiram de levantamento da auditoria de 2014 e da análise de ligação entre permissões realizada pela comissão.
Foi elaborado ainda um questionário-padrão com pouco mais de uma dezena de questões para aferir o nível de conhecimento do serviço pelos entrevistados. Algumas: qual sua opinião sobre o Uber? Possui alguma outra fonte de renda além do táxi e qual? Qual sua escala de trabalho como taxista? Qual ponto seu veículo está lotado? Qual o nome dos seus defensores?
O relatório final acusa que apenas um entre os 18 permissionários efetivamente trabalha no táxi. É Alex Muller. Já Sandra Muller, permissionária do veículo 0056, responde que não possui nenhuma outra fonte de renda além do táxi, mas também respondeu que nunca chegou a atuar como taxista. Oito entrevistados alegaram possuir outra fonte de renda. A maioria demonstrou conhecimento sobre sua permissão, referindo o nome de seus defensores, o ponto do táxi em que trabalham, o tempo de permissão, e se possui clientes cativos.
O único que destoou foi Valdir Jorge Souza. Segundo o relatório, o permissionário citou o nome de apenas um de seus defensores e, ainda assim, com alguma dificuldade. Valdir alegou que, além de permissionário da placa 0471, é procurador da 0135. Mas as investigações da comissão levantou que ele detinha procuração, sem data de validade, de 10 placas: 0109, 0119, 0157, 0209, 0275, 0329, 0355, 0087, 0101 e 0102.
Valdir será ouvido na sessão desta segunda-feira (18) da CPI da Máfia dos Guinchos. Segundo taxistas ouvidos pela reportagem, Valdir é filho de Josias Siqueira, outro grande gestor de placas de táxi de Vitória.
O permissionário Carlos Roberto Agne Filho, da placa 0084, também foi pego no contrapé. Respondeu não deter procurações, mas a comissão as detectou para as placas 0345 e 0357. Também foram ouvidos Jane Cheila Fernandes Lordello (0345); Adalto Basto das Neves (0464); Simone Muller Helmer (0143); Marilda Lima Tatagiba (0313); Carlos Eduardo da Silva (0053); Sylvia Bastos de Souza (0157); Olga Monico (0159); Erica do Nascimento de Napoles (0424); Vera Lucia Pereira Santana (0277); Lcir Souza de Carvalho (0433); Cristiano Agne (0317); Marcelo Pereira (0346) e Thiago Monico Rossi (0132).
Ao todo nove mulheres foram convocadas para as oitivas da comissão. Nas praças de Vitória, as mulheres representam cerca de 1% do total de taxistas. A utilização de esposas, filhas e sobrinhas como “laranja” é prática comum no esquema dos táxi para a formação de frotas particulares.
O relatório constata ainda a existência de sublocação de placas, mecanismo que garante ao permissionário um lucro mensal de R$ 6 mil sem trabalhar como taxista. O relatório deixa claro que a prática infringe a lei que regulamenta o serviço e é passível de revogação da permissão.
Admite, ainda, algumas dificuldades de fiscalização, como impossibilidade de verificar quantos veículos trabalham de fato e em que horários e se os permissionários de fato trabalham, e recomenda a adoção de algumas medidas para melhorar o trabalho, como equipar os veículos com sistema GPS, com recibo eletrônico acoplado ao taxímetro (para identificação de valor, quilômetro rodado, motorista, telefone e número do veículo), criar sistema próprio de chamada de corridas, e revisar lei atual de regulamentação do serviço de táxi, entre outras.
O relatório da prefeitura confirma a série de reportagens produzidas por Século Diário sobre o serviço, apontando possíveis fraudes nos contratos de permissão e a formação de frotas particulares de táxi de 60 veículos, cujo faturamento soma pelo menos R$ 300 mil por mês.
No entanto, o documento não investiga os lucros dos gestores de placa sobre a exploração de um serviço público. Restringe-se a apurar irregularidades nos contratos de permissão. De qualquer modo, o relatório fortaleceu os indícios de que a organização do mercado do táxi em Vitória ultrapassa os grandes permissionários e donos de placa, atingindo a Setran. Há ainda suspeições que respigam no líder do governo Luciano Rezende (PPS) na Câmara de Vitória, Rogerinho Pinheiro (PHS).
A Câmara deve decidir na próxima semana a composição da CPI dos Táxis, que vai investigar possíveis fraudes nos contratos de permissão. Os membros já foram nomeados: Serjão Magalhães (PTB), Reinaldo Bolão (PT) e Devanir Ferreira (PRB).