AS INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS
Emily Dickinson recebeu já na sua adolescência a influência literária de nomes como William Wordsworth, Ralph Waldo Emerson, Henry Wadsworth Longfellow, John Keats e também dos hinos de Isaac Watts, e na ala feminina da literatura aparecem nomes como Lydia Maria Child e suas Cartas de Nova Iorque, e as britânicas Elizabeth Barrett Browning e Charlotte Brontë, e dentre os clássicos universais se destaca Shakespeare.
PUBLICAÇÕES
Os primeiros poemas que Emily Dickinson publicou saíram entre os anos de 1861 e 1862 na revista Republicano, e isso devido à sua amizade com o editor Samuel Bowles. Tais que foram os versos I taste a liquor never brewed e Safe in their Alabaster Chambers, mas estes versos foram, no entanto, mutilados na edição antes de serem publicados, o que era uma prática muito comum entre os jornais e revistas da época, pois muitas vezes a má qualidade ou a ousadia dos trabalhos que apareciam para publicação levava os editores a tais modificações com diversas correções e censuras que, ao fim, deturpavam completamente o sentido original de tais obras.
A RECLUSÃO
Entre os anos de 1858 e 1866 temos o período mais produtivo da obra de Emily Dickinson, no qual temos aí cerca de mil e cem poemas vindo à luz, com temas que passavam pela morte, a imortalidade, sua relação com a natureza e com Deus, além de temas que iam da perda até, ao fim, o amor.
Contudo, em 1867 ela teve um colapso nervoso, e passou a viver reclusa, sendo raramente vista em público, e em casa recebia apenas poucos amigos e parentes, em especial as crianças, filhas de seus primos e tios, e seu único contato com o mundo exterior eram as cartas que recebia dos amigos.
FINAL
Por fim, nas últimas duas décadas em que viveu, entre 1860 e 1880, Emily Dickinson passou a produzir uma média de quase cinquenta poemas por ano, e pode ser que um problema seu na visão fez com que sua produção prolífica se reduzisse nestes últimos anos. E sua biografia foi então marcada por uma série de colapsos nervosos que fizeram com que ela se tornasse uma pessoa extremamente frágil, tendo em 1884 o mais grave de seus colapsos, sem nunca se recuperar, vindo a morrer em 15 de maio de 1886, vítima de nefrite.
A PUBLICAÇÃO PÓSTUMA DE SUA OBRA
Da obra de Emily Dickinson, temos um total de quase mil e oitocentos poemas catalogados, todos devidamente numerados. E o fato crucial foi quando Lavínia, a irmã de Emily, impressionada com a obra colossal da irmã, decidiu não obedecer ao desejo da irmã falecida de destruir tais escritos, procurando, ao contrário, a publicação daquele espólio literário, recorrendo então Lavínia a Mabel Loomis Todd, que era uma professora de astronomia, esposa de Austin Dickinson, que nunca conheceu Emily, mas que ajudou na reunião de um extrato significativo de sua obra, mas que teve seu material original bem alterado, pois foram feitas inúmeras correções de sintaxe, alterações de rimas, versos cortados e títulos foram dados a poemas que não os tinham.
E assim surgiu um primeiro volume de parte da obra de Emily Dickinson, que foi o volume Poems, lançado em 1890 com 115 de seus trabalhos, já figurando aí parte de seus poemas mais populares como I taste a liquor never brewed, Much Madness is divinest Sense e Because I could not stop for Death. E se seguiu a este trabalho de reunião, dois outros volumes que foram os Poems, Second Series e Poems, Third Series, publicados respectivamente em 1891 e 1896.
E mais de uma década mais tarde, foi uma sobrinha de Emily, Martha Dickinson Bianchi, que deu seguimento à publicação da obra da escritora, tendo em 1914 a publicação de uma coletânea de poesia que sua mãe, Sarah Dickinson, já havia organizado anos antes, e que resultou na edição de nome The Single Hound, no qual figuravam 146 poemas inéditos de Emily Dickinson. E nas três décadas seguintes tivemos mais quatro novos volumes de poemas, como o Bolts of Melody em 1945, que foi o mais importante destes. E temos nesta altura 660 obras inéditas de Emily Dickinson sendo publicadas.
O momento mais importante para a obra de Emily Dickinson, no entanto, foi quando em 1955 o estudioso Thomas H. Johnson resgatou tal obra ao preparar pela Harvard University Press, por sua vez, a primeira obra completa das poesias de Emily Dickinson, a qual foi dividida em três volumes e organizada em ordem cronológica, com Thomas realizando um importante trabalho de revisão dos escritos originais da escritora, suprimindo as alterações e correções da irmã de Emily, sendo o projeto mais sério realizado com o espólio de Emily Dickinson até então, com tal organização e edição sendo considerada agora como a versão definitiva da obra de Emily Dickinson.
ESTUDOS CRÍTICOS
E os estudos críticos da obra de Emily Dickinson, assim como a inclusão de seu nome na História da Literatura norte-americana, datam da década de 1960, junto com a expansão do movimento feminista, que trouxe à baila o resgate de grandes escritoras da História dos Estados Unidos que foram até aquele momento negligenciadas. Com o nome de Emily Dickinson hoje em dia tendo dimensão de figurar entre os que fizeram a grande literatura mundial.
E o crítico Otto Maria Carpeaux afirma, por conseguinte, que Emily Dickinson “é considerada, hoje, como a maior poeta americana. Não inspirará nunca admiração perplexa, como Poe, nem será tão popular como Whitman. É poesia para os poucos poet’s poetry”. E ainda segundo Augusto de Campos, que é seu tradutor em língua portuguesa, a poesia de Emily Dickinson se aproxima, de certa forma, ao Hai-Kai, quando Augusto nos diz: “Emily é muito sintética, seus poemas são, em geral, muito breves, e ela é capaz de captar um momento insubstituível de observação ou de reflexão poética com um mínimo de palavras. Seus poemas são pequenas ‘iluminações’. Mas não são poemas circunstanciais. São muito elaborados e ao mesmo tempo surpreendentes”.
POEMAS:
(obs: a escritora não colocava títulos em seus poemas, no que aqui uso a convenção de apenas numerá-los)
POEMA I : O poema breve, bem ao estilo sucinto de iluminações de Emily Dickinson, nos diz: “Se o mar, uma vez rasgado,/Outro, mais além, revelar/E esse, ainda outro, e os três/Forem suposição apenas/De mares periódicos/Desapossados de praias,/À beira dos mares do vir-a-ser,/Eis aí a Eternidade.”. O poema se abre em suas camadas sutis, e sua imagem de sucessão com os mares que destes versos se abrem, terminam com o sonho da eternidade, e o poema finda em sede de infinito.
POEMA II : O poema de Emily aqui tem versos que nos levam ao inverno e tem a luz que percorre as catedrais e seus cânticos, no que temos: “Há uma certa obliquidade/Na luz das tardes hibernais,/Que oprime feito o peso/Dos cânticos, nas catedrais./Com celeste golpe nos fere/E não lhe achamos a cicatriz,”. E o poema segue, ainda com o enigma da luz: “Inalterável, essa luz/É signo de desesperança;” (…) “Quando chega, fica atenta a paisagem/E não mais respiram as sombras;/Quando parte, é como a distância/Que no olhar da morte se encontra.”. A luz se encontra com a sombra, o espírito que se ilumina também é o ser que se encontra no olhar inevitável da morte.
POEMA III : O poema é uma fantasmagoria, que nos dá esta visão: “Para as assombrações, desnecessária é a alcova,”. Mas existe o interior da própria alma, que tem instâncias mais sinistras que um simples espectro qualquer, no que o poema segue: “Mais seguro é encontrar à meia-noite/Um fantasma,/Que enfrentar, internamente,/Aquele hóspede mais pálido./Mais seguro é galopar cruzando um cemitério/Por pedras tumulares ameaçado,/Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo/Em desolado espaço./O “eu”, por trás de nós oculto,/É muito mais assustador,”. Este encontro da alma consigo mesma é sim a experiência assustadora aos olhos da poesia de Emily, e este espectro íntimo é bom tê-lo diante de uma arma, para assim o poema findar aqui com a prudência e os ferrolhos da porta, no que temos, enfim, a ameaça maior ainda por toda a parte, o interior de uma alma atormentada: “O homem prudente leva consigo uma arma/E cerra os ferrolhos da porta,/Sem perceber um outro espectro,/Mais íntimo e maior.”
POEMA IV : O poema na aurora é um sussurro de Emily e revela a sua relação com a natureza e a luz, no que temos: “Os condenados miram a aurora” (…) “Pois, quando ao longe tornar a luzir,/Duvidam que possam vê-la./O homem, que há de morrer amanhã,/Ao rouxinol do prado faz-se atento,/Pois seu trinar comove o machado/Sequioso de sua cabeça./Feliz daquele, que a enamorada/Aurora precede – o dia!/Feliz daquele para quem/O rouxinol canta, sem cantar elegias.”. A morte perde para a luz da aurora, e não temos aqui uma elegia, mas um poema que sustém a vida no canto de um rouxinol.
POEMA V : O poema canta a vitória, e tal imagem poética fortíssima irrompe nos versos, que não se contêm: “A vitória é o bem mais querido/Por aqueles que jamais vencem.”. O canto de vitória é bem desejado por quem perde a luta, no que temos: “Ninguém da purpúrea hoste,/Que hoje empunhou o estandarte,/Oferece da Vitória/Definição mais cabal/Do que o derrotado agonizante,/Em cujo ouvido interditado/O distante clangor do triunfo/Explode torturante e claro!”. O triunfo é bem sonhado pelos que sucumbem, e o poema dá a pura definição deste anelo pelos que soçobram em seus desvios agonizantes, a vitória é esta miragem de quem é derrotado.
POEMA VI : O poema define a diferença da tragédia do drama, e nos dá tais versos: “Do Drama, a mais viva expressão é o dia comum,/Que nasce e morre à nossa vista;/Diversamente, a Tragédia,/Ao ser recitada, se dissipa/E é melhor encenada/Quando o público se dispersa/E a bilheteria é fechada.”. A tragédia e sua força descomunal, que eleva o destino como ente seminal da vida humana, tem veia teatral, e arte afirma esta vida visceral, no que o poema conclui tal tradução da vida trágica como o ritual teatral por excelência, no que temos: “Seria perpetuamente encenado/No coração humano –/Único teatro que, sabidamente,/O proprietário não consegue fechar.”.
POEMAS:
POEMA I
Se o mar, uma vez rasgado,
Outro, mais além, revelar
E esse, ainda outro, e os três
Forem suposição apenas
De mares periódicos
Desapossados de praias,
À beira dos mares do vir-a-ser,
Eis aí a Eternidade.
POEMA II
Há uma certa obliquidade
Na luz das tardes hibernais,
Que oprime feito o peso
Dos cânticos, nas catedrais.
Com celeste golpe nos fere
E não lhe achamos a cicatriz,
Apenas uma diferença interna,
Lá, onde jazem os sentidos.
Inalterável, essa luz
É signo de desesperança;
É aflição majestosa
Dos altos ares baixando.
Quando chega, fica atenta a paisagem
E não mais respiram as sombras;
Quando parte, é como a distância
Que no olhar da morte se encontra.
POEMA III
Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa –
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.
Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.
Mais seguro é galopar cruzando um cemitério
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.
O “eu”, por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
E um assassino escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores, é o menor.
O homem prudente leva consigo uma arma
E cerra os ferrolhos da porta,
Sem perceber um outro espectro,
Mais íntimo e maior.
POEMA IV
Os condenados miram a aurora
Com diferenciado prazer –
Pois, quando ao longe tornar a luzir,
Duvidam que possam vê-la.
O homem, que há de morrer amanhã,
Ao rouxinol do prado faz-se atento,
Pois seu trinar comove o machado
Sequioso de sua cabeça.
Feliz daquele, que a enamorada
Aurora precede – o dia!
Feliz daquele para quem
O rouxinol canta, sem cantar elegias.
POEMA V
A vitória é o bem mais querido
Por aqueles que jamais vencem.
Para se compreender um néctar,
Requer-se necessidade intensa.
Ninguém da purpúrea hoste,
Que hoje empunhou o estandarte,
Oferece da Vitória
Definição mais cabal
Do que o derrotado agonizante,
Em cujo ouvido interditado
O distante clangor do triunfo
Explode torturante e claro!
POEMA VI
Do Drama, a mais viva expressão é o dia comum,
Que nasce e morre à nossa vista;
Diversamente, a Tragédia,
Ao ser recitada, se dissipa
E é melhor encenada
Quando o público se dispersa
E a bilheteria é fechada.
“Hamlet” seria Hamlet,
Inda que Shakespeare não o criasse,
E “Romeu”, embora sem mais lembranças
De sua Julieta,
Seria perpetuamente encenado
No coração humano –
Único teatro que, sabidamente,
O proprietário não consegue fechar.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com