Luiz Alves de Lima e Cleonice Conceição tiveram os sonhos transformados em pesadelo e ainda esperam por Justiça
O ex-senador Magno Malta (PL), candidato ao mesmo cargo nas eleições deste ano, é alvo de mais um mandado de citação expedido pela Justiça no último dia 20, dos vários que deixou de atender, no processo criminal em que foi denunciado, em 2018, por prática de tortura e maus-tratos pelo ex-cobrador de ônibus Luiz Alves de Lima. Segundo a vítima, o processo estava parado e passou a ter andamento a partir desse mês de agosto.
A vida de Luiz virou de cabeça para baixo, e o sonho, pesadelo. “Magno Malta não é pastor, não, é ruim, mentiroso e cruel”, desabafa Luiz, ao interromper o relato da esposa, Cleonice Conceição, e relembrar a história que mudaria suas vidas para sempre. Há 12 anos, na véspera de disputar a reeleição para o Senado, em 2010, com objetivo de ganhar os holofotes da mídia, Magno Malta envolveu Luiz e Cleonice no suposto crime de abusar sexualmente da própria filha, então com dois anos de idade.
Na prisão, Luiz perdeu uma das vistas em decorrência das torturas que sofreu e carrega marcas pelo corpo, como uma cicatriz na perna direita, cotocos de dentes retirados por um alicate e redução da outra vista. Já Cleonice, presa por quatro meses, hoje recebe acompanhamento psicológico e tem frequentes crises de choro. Ela foi acusada de ser conivente com o marido.
O casal viu a vida mudar de repente e hoje luta pela sobrevivência, já que ele não pode trabalhar, por ter perdido um vista e sofrido danos na outra. “Ele já secou as lágrimas e sei que minha família foi interrompida de viver uma história”, afirma Cleonice.
Seu relato é sufocado por lágrimas, em meio a soluços, forçando a busca por ar. Tenta engolir a mágoa, como ressalta, enxuga o rosto com os dedos, e lança o olhar para o marido, preso, como ela, e vítima de tortura e maus-tratos resultante de atos da extinta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, rebatizada de CPI dos Maus-Tratos, comandada em 2010 pelo então senador Magno Malta, derrotado em 2018 e candidato do PL este ano.
“Essa história é assim; eu fui tatuada sem pedir para ser. É uma dor insuportável, a gente, aparentemente, acha que esqueceu, mas, de repente, volta tudo. Eu falo assim pra ele [Luiz] que, na aflição, né (…) – as lágrimas a impedem de falar -, sei que minha família foi interrompida de viver uma história. Foram nove anos de sofrimento, nove anos sem poder ver nossa filha, não foi um tempo de paz, fomos impedidos até de participar de aniversários dela, de fazer festas”.
Haviam perdido a guarda da filha, recuperada somente em 2018, no rastro da acusação injusta, que foi levada para a casa de avós e abrigos. Cleonice contou sobre o drama que vive na tarde da última sexta-feira (23), na simples e bem arrumada salinha da casa onde mora com o marido, Luiz, a filha de 15 anos, estudante, e hoje envolvida para divulgar nas redes sociais o drama do qual foi vítima anos atrás.
Cleonice acabara de chegar de uma das duas faxinas, R$ 100,00 cada uma, trabalho que ajuda a complementar o orçamento doméstico, de R$ 1 mil da pensão vitalícia estabelecida pela Justiça – “Era de R$ 2 mil, mas o juiz diminuiu até acabar o processo”, informa. O casal recebe ajuda de amigos e parentes. A casa, muito simples, no primeiro piso por cima de uma área desabitada, guardada por um cachorro e cedida pelo pai, tem móveis doados.
É nesse ambiente que Cleonice fala: “Ontem mesmo eu estava comentando com minha filha, que a gente foi preso inocentemente e ninguém faz nada. É só mais um, que vai sofrer, perder a vista, mais um que pode sair de lá esquartejado, morto. Quando eu fui presa, fiquei numa salinha que a moça falava bem assim comigo: vou te colocar lá dentro do presídio e a outra falou assim – daqui a 30 segundos você vem buscar o corpo -. Então passou assim na minha mente – perder a minha vida em 30 segundos?”.
A Justiça os inocentou, mas, a partir da prisão, das torturas e humilhações, a história dos dois mudou de forma drástica. Os sonhos da jovem que chegara a Vitória vinda da Bahia, se transformaram em luta pela sobrevivência, por justiça, em recordações de dor passadas em noites insones.
“Queria estudar, ser advogada”, lembra, e esboça um sorriso ao falar do amor pelo marido, que conheceu no terminal de ônibus, ela passageira, ele cobrador, agora “cinquentão”, sorri, e lembra o aniversário do marido há dois dias, ressaltando que o amor entre os dois permanece. “É de Deus”, sintetiza.
‘Erro grave’
Luiz e Cleonice foram presos em 2010. O laudo preliminar atestou “hímen roto” e resultou em mais um caso levado à CPI da Pedofilia. Em julho de 2009, outro laudo apontara “ruptura himenal antiga em 11 e 2 horas”, atestado pelo médico por Rogério Piontkowski. Três anos após, novo laudo, realizado em fevereiro de 2012, constatou que a menina era virgem e que a inflamação na região era causada por oxiúros.
“É possível auferir, então, erro grave na realização de exame para constatação de ‘ruptura de hímen’ por agente do estado, ou seja, o laudo realizado pelo requerido Rogério não atestou ser a vítima virgem, de forma equivocada, desconsiderando o processo inflamatório na vagina da criança por meio de bactérias e vermes (…)”, afirma documento do processo.
“(…) o suposto réu [Luiz] foi acusado, constrangido e violentado psicologicamente e moralmente tanto pelo delegado de polícia responsável pelo caso quanto pelo atual senador Magno Malta, responsáveis à época pela CPI contra pedofilia”, conforme depoimentos e documentos anexos, que acrescenta: “o atual senador, mesmo sem saber a realidade dos fatos, convocou a TV Gazeta para ir até a delegacia, trazendo ainda mais constrangimentos à família e fazendo com que o momento da prisão se tornasse ainda pior”.
A denúncia aponta atuações de Magno Malta, os delegados de polícia Marcelo Nolasco de Abreu e Márcio Lucas Malheiro de Oliveira, além do médico legista Rogério Piontkowski, segundo o Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPES). A acusação afirma que promoveram “um verdadeiro show no departamento de polícia, incitando a população e demais participantes do ato a menosprezar os requerentes em virtude dos meros indícios encontrados (laudo errôneo e testemunhos evasivos)”.
“O atual senador [na época], bem como o delegado de polícia, por diversas vezes afirmaram em alto e bom som: Vejam esse criminoso!!! Abusou de sua própria filha!!!”, aponta documento anexado ao processo. Magno Malta chegou a gravar, em 2018, após o caso vir à tona em matéria de Século Diário, que repercutiu nos principais veículos nacionais, um vídeo de propagando eleitoral, no qual chama Luiz Alves de “vagabundo”, sem citar o nome. Ele perdeu a eleição, de virada.
Nove anos
“Minha vida hoje é ver minha esposa e minha filha em tratamento psicológico. Como não consegue um trabalho melhor, vive fazendo faxina; eu acompanho o processo, que tentaram engavetar, mas não conseguiram”, conta Luiz.
“Eu espero que a Justiça seja feita, porque, como Magno disse num vídeo gravado na época da denúncia – vagabundo sempre corre para justiça –, então eu quero que ele explique isso”, afirma, referindo-se a postagens em redes sociais do ex-senador anexados ao processo, nas quais ele mantém as acusações, chama Luiz de vagabundo, sem citar o nome, apesar da constatação de inocência formalizada na Justiça, e se diz “defensor das crianças”, frase que o tornou famoso no país, mas, de outro lado, é alvo de controvérsias, por seu uso para interesses político-eleitorais.
“Eu fui vítima desse canalha, minha família foi vítima, todo mundo foi enganado. Um homem que diz pregar a palavra de Deus, como acreditar nele?”, comenta, ao lado de Cleonice, que reforça: “São nove anos de sofrimento”.