Durante cinco décadas de lutas, inclusive com armas, os índios do Espírito Santo enfrentaram a Aracruz Celulose (Fibria), empresa que lhes tomou as terras. Finalmente, parte destas terras voltaram às mãos dos índios, em escritura pública, lavrada em cartório de Aracruz.
É o último ato administrativo da retomada das terras. No cartório estão registrados 18.154,93 hectares de terras indígenas no Espírito Santo, dos povos Tupinikim e Guarani. As terras estão na região de Caieiras Velhas, no município de Aracruz, com 14.282,79 hectares, e em Comboios, Linhares, com 3.872,14 hectares.
A informação sobre escrituração das terras indígenas é de Jaguareté, liderança indígena. Ele foi cacique em Caieiras Velhas, entre 2003 e 2008, quando houve um confronto promovido por manobra da Aracruz Celulose (Fibria), com emprego de forças especiais da Polícia Federal, estas por determinação da Justiça Federal.
É de Jaguareté a análise da escrituração das terras indígenas. “Agora podemos comemorar! Finalmente saiu o último ato administrativo de nossas terras. Recebi recentemente a escritura em cartório das Terras Indígenas Tupinikim/Guarani e Comboios”.
Ele ressalta que representa a correção de um erro histórico. “É a consagração de muitos guerreiros e guerreiras, inclusive os não indígenas, que muito contribuíram com a demarcação de nosso território.
A luta indígena ainda esta longe do fim, com tantos direitos ameaçados, e falta de recursos para o etnodesenvolvimento. Mas o importante que nossos filhos viverão em nossa 'mãe terra',com liberdade e dignidade, sem o constrangimento que tivemos”, finaliza Jaguareté em seu Facebook.
Os índios conseguiram reaver parte das terras que foram tomadas pela Aracruz Celulose (Fibria) durante a ditadura militar. As terras retomadas estão exauridas. Não têm mais água, tampouco nutrientes para novos plantios de mata atlântica. Não têm biodiversidade, pois a Aracruz Celulose devastou entre 50 e 100 mil hectares de mata nativa, para os plantios de eucalipto. Nas terras recuperadas, sobram agrotóxicos, e tocos de eucalipto, que impedem a mecanização.
Os plantios da espécie exótica começaram no campo em novembro de 1967. Começava a materialização do sonho tropical do empresário norueguês Erling Sven Lorentzen, nascido em Oslo, 28 de janeiro de 1923, e casado com a princesa Ragnhild, irmã do rei Harald V. Ele deixou o Brasil, vendendo sua parte na empresa em 2009, com toda a riqueza amealhada com a destruição quase total da cultura indígena, quilombola e camponesa no Estado.
A história da recuperação das terras será contada às futuras gerações indígenas. Os índios têm a luta como histórica e a data da escrituração será lembrada em data especial nas aldeias.
Parte dela é contada por Jaguareté. A luta começou nos anos 60 do século passado. Foram três etapas de combates. Depois de longa batalha, pois as autoridades do governo do Estado e federais diziam que não existiam mais índios no Espírito Santo. Na luta, os índios fizeram a demarcação de parte de suas terras, em 1983.
Depois, forçada, a Fundação Nacional do Índio (Funai) confirmou em estudo antropológico, a existência de terra indígena no Estado, em 1994 houve uma primeira demarcação oficial. O governo Fernando Henrique Cardoso, contrário aos índios, legitimou em portaria da Funai apenas 2.500 hectares, de 14.282 hectares, do estudo anterior.
Os índios aceitaram a terra demarcada, porque reconhecia parte de suas terras, e era prova oficial de que da terra não deveriam sair. O Ministério Público Federal (MPF) assinou este acordo com a então Aracruz Celulose. Depois, se considerando em erro, o MPF retirou sua assinatura do acordo.
Com a mudança do governo federal, assumindo o governo Lula, os índios voltaram à carga por suas terras. Convenceram o governo de que não havia necessidade de um novo estudo antropológico, considerando que o realizado foi conclusivo sobre quem eram os donos da terra. A Funai não aceitou, os índios pressionaram, e a Funai acabou cedendo.
A Funai cedeu após os índios fecharem o Portocel, da Aracruz Celulose, e também lacrarem as três usinas de celulose da empresa. Em 2006, uma decisão judicial a favor da então Aracruz Celulose degenerou em conflito armado: os índios com seus arcos, flechas e bordunas, e a Polícia Federal com armamento pesado e tropa especial. A Polícia retira os índios da aldeia Olhos D'água e destroem a aldeia, inclusive o Opu (casa de reza), a igreja dos índios. Muitos índios saíram feridos, atingidos por balas de borracha.
Em 2008 o Ministério da Justiça, ao qual a Funai é subordinada, fez decreto reconhecendo as terras indígenas. O decreto foi homologado em 2010 pelo presidente então Lula, pressionado pelos índios. Agora, em cartório, com data de 24 de março de 2015, foi lavrada a escritura das duas terras indígenas. Nas mãos dos índios, o documento chegou em 13 de abril. Nesta segunda-feira (27), os índios o divulgaram. Falta marcar a data para as comemorações.
Histórias de horror
Os primeiros plantios de eucalipto da Aracruz Celulose começaram em novembro de 1967. Nesta ocasião, a empresa já havia grilado terras dos quilombolas, pequenos produtores rurais e dos índios. Para isto usou pistoleiros, como o temido matador major PM Orlando Cavalcanti, da PM, e o tenente Merçon, do Exército. Também usou o poder econômico e sua parceria com o governo militar e com os governadores biônicos (não eleitos pela população).
Dos quilombolas, a empresa tomou, seja comprando por preços vis a partir de sedução com promessa de empregos e bons salários, ou pela força, 50 mil hectares. Dos índios, a empresa usurpou 40 mil hectares, dos quais agora o território legitimado. Os quilombolas ainda não retomaram nada de seu território, pelo qual lutam. E tampouco os pequenos produtores recuperaram suas terras.
Para os plantios de eucalipto, a empresa destruiu a mata atlântica e toda a sua biodiversidade. Erling Sven Lorentzen foi o mentor do assalto aos índios, quilombolas e agricultores e das suas terras. Ele foi fundador e presidente da Aracruz Celulose, da qual detinha 28% das ações, vendidas em 2009, por R$ 2,3 bilhões. Com a operação de venda, a Votorantim e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômido e Social (BNDES) passaram a ser o novo bloco de controle da Aracruz.
E os recursos federais e favores estaduais que sempre irrigaram os cofres da Aracruz Celulose (Fibria), continuam. O BNDES empresta a juros subsidiários, quase doações, à empresa. Tudo começou desde o inicio dos plantios do eucalipto, durante a ditadura militar.
O inicio dos plantios materializava o sonho tropical do empresário norueguês Erling Sven Lorentzen. Ele conseguiu realizar o sonho e aumentar o ouro da coroa norueguesa (e também sueca, que foi acionária na empresa), aliando-se as mais altas figuras da ditadura militar, como o general-presidente da República Ernesto Geisel.
E contou com a ajuda dos representantes dos militares no Espírito Santo, os governadores biônicos (não eleitos pelo povo e nomeados pelo governo federal) Arthur Carlos Gerhardt Santos e Cristiano Dias Lopes. Gerhardt começou a preparar o terreno para o domínio da Aracruz Celulose, fundada em abril de 1972.
Dinheiro não faltou para todos os projetos, inclusive a construção das três fábricas, em Aracruz. O projeto idealizado pela empresa para o norte do Estado se viabilizou graças ao financiamento do BNDE – na época sem o social –, considerado o maior concedido até então a uma empresa privada. Orçado inicialmente em U$S 460 milhões, e depois corrigido para US$ 536 milhões, coube ao banco a maior parte dos recursos, US$ 337 milhões.
Quem coroou o acordo foi o governador biônico do Estado na época, ex-ministro da Defesa no governo Fernando Henrique Cardoso, e finalmente ex-deputado estadual Elcio Alvares (DEM) na legislatura encerrada em 2014. A nomeação dele no governo, em março de 1975, para substituir Arthur Carlos Gerhardth, foi considerada uma contribuição ao arranjo para o financiamento do Grupo Aracruz.
Já Arthur Carlos Gerhardt Santos saiu do governo para assumir, direto, a presidência da Aracruz Celulose. Também foi presidente da igualmente poluidora CST, atual ArcelorMittal Tubarão.
Depois da inauguração da fábrica A da empresa, o BNDES continuou financiando os projetos de expansão da Aracruz – fábricas B e C -, com participações no quadro acionário.
Em 2003, o Grupo Aracruz iniciou a construção da fábrica da Veracel, em Eunápolis, no extremo sul da Bahia, em parceria com a empresa sueco-finlandesa Stora Enso, com um financiamento de US$ 546 milhões do banco. Decisão da Justiça Federal estanca esta sangria do BNDES em favor da Aracruz Celulose (Fibria).
O processo de usurpação das terras quilombolas pela Aracruz Celulose, no período militar, assim como ocorrera primeiro com os índios Tupiniquim e Guarani de Aracruz, foi marcado por episódios de violência, terrorismo e ameaças.
Um dos documentos entregues em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) realizada pela Assembleia Legislativa sobre a Aracruz Celulose listou 65 áreas, requeridas por mais de 30 funcionários e ex-funcionários da empresa, totalizando mais de 13 mil hectares de terras transferidas pela empresa, muitas delas nas áreas mais agricultáveis do Estado.
Os imóveis que constam na decisão foram requeridos nos anos 70 por 12 ex-funcionários da empresa, que funcionaram como laranja na operação. Foram eles: Dirceu Felício, Edgard Campinhos Junior, Fernando José Agra, Giácomo Recla Bozi, Orildo Antônio Bertolini, Ivan de Andrade Amorim, Sérgio Antônio Forechi, Alcides Felício de Souza, Gumercindo Felício, Joerval Abrahão Vargas, José Antônio Cutini e Valtair Calheiros.
Em ação na Justiça Federal, o MPF requer a declaração de nulidade dos títulos de domínio de terras devolutas concedidos pelo Estado à Aracruz Celulose e a legitimação das terras em favor dos quilombolas, conforme o previsto em lei, além da condenação da Aracruz a reparar os danos morais coletivos, no valor de R$ 1 milhão.