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Entre os mais vulneráveis, os atingidos pela lama da Vale no corpo e na alma

Crime ainda compromete saúde e subsistência de milhares. Enivaldo vai reconvocar a Fundação Renova em CPI

“Temos recebido muitas demandas afetas à saúde mental das comunidades atingidas. Notícias de depressão, ansiedade, dentre outros. Enxergamos com especial preocupação esses grupos, que agora também buscam se proteger do coronavírus a partir do isolamento social”. O relato é do defensor público estadual Rafael Portella, que nos últimos anos tem atuado diretamente na defesa dos direitos dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, ocorrida em Mariana/MG, no dia cinco de novembro de 2015, considerado o maior crime ambiental do país.

“Outro ponto também é a situação da mulher atingida. Se antes já havíamos, preliminarmente, visualizado o possível aumento da violência doméstica em virtude da ociosidade gerada pela suspensão das atividades econômicas derivadas do Rio Doce, com o isolamento social temos também a preocupação de que a demanda possa crescer. Soma-se isso a dificuldade de acesso à cesta básica, ao auxílio emergencial, dentre outros. Estamos monitorando a situação, mas com o passar do tempo a tendência é esta situação de vulnerabilidade se agravar”, avalia o defensor, que é coordenador do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam) da Defensoria Pública Estadual (DPES) e membro do Grupo Interdefensorial do Rio Doce (GIRD), que reúne as defensorias estaduais capixaba, mineira e da União.

O atendimento a essas demandas, ressalta, precisa ser contemplado pelo sistema de saúde dos municípios e do Estado, especialmente agora que a Justiça Federal determinou o aporte de R$ 36 milhões, por parte da Fundação Renova, ao Estado do Espírito Santo, e de R$ 70 milhões a Minas Gerais. O valor é um adiantamento do total de R$ 2,2 bilhões que as mineradoras se comprometeram a destinar para programas de reparação dos danos causados pelo crime.

A solicitação foi feita pela Advocacia-Geral da União (AGU), juntamente com a Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais (AGE/MS) e a Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo (PGE/ES). A decisão judicial estabelece que o dinheiro seja destinado exclusivamente “para a aquisição de bens de capital e/ou bens de consumo duradouro, a exemplo de equipamentos médicos, como respiradores pulmonares, monitores cardíacos, camas hospitalares, aparelhos de tomografia, hospitais de campanha, ambulâncias, ou, ainda, reformas de áreas hospitalares com vistas à sua ampliação e consequente oferta de novos leitos no sistema público de saúde”. “Entendemos que o repasse emergencial é de suma importância para auxiliar o Estado do Espírito Santo no enfrentamento da pandemia”, comenta o defensor.

CPI

A saúde física, mental e financeira dos atingidos, agravada pela pandemia de Covid-19, também está no foco da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Sonegações, cujo presidente, deputado Enivaldo dos Anjos (PSD), já anunciou que irá convocar novamente a Fundação Renova para dar explicações.

Em ocasiões passadas, o ex-presidente da Fundação, Roberto Waack, chegou a receber voz de prisão no Plenário da Casa devido a evidências de ter mentido aos parlamentares durante depoimento à CPI.

Em relato à Assembleia Legislativa, a pescadora Eliane Balke, de Campo Grande, São Mateus, norte do Estado, afirma que os atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP continuam “sofrendo os danos e muitas alterações negativas na água, na saúde, no trabalho, na pesca, na cata do caranguejo, na agricultura, na pecuária, no comércio, no artesanato e no meio ambiente. Mudou todo o nosso modo de vida. Vivemos insatisfeitos e incompreendidos pela Fundação Renova”.

Participante das reuniões das comissões de atingidos no Espírito Santo, Minas Gerais e Brasília, Eliane relata os principais problemas de saúde que afligem os moradores da bacia hidrográfica do Rio Doce e do litoral capixaba: “alergia de pele, coceiras e feridas expostas, aumento do número de casos de depressão, crise de ansiedade, perda de memória, problemas de sono, transtornos mentais e comportamentais, aumento da ingestão de remédios controlados, aumento do número de pessoas com alcoolismo e consumo de drogas, aumento de separação de casais, consumo de água contaminada da Bacia do Rio Doce, dores de barriga e diarreia, dores articulares, nos ossos e câimbras, vômitos e reações alérgicas pelo consumo de peixe, casos de pressão alto, queda de cabelos do corpo inteiro”.

Em resposta aos questionamentos da Ales, a Fundação Renova alega ter pago, desde o rompimento da barragem até fevereiro deste ano, cerca de R$ 1,14 bilhão, com indenizações e auxílio financeiro emergencial no Espírito Santo – volume semelhante ao que é anunciado a cada trimestre apenas por uma das autoras do crime, a Vale, relativo ao sobe e desce de seus lucros ou prejuízos trimestrais, que variam de acordo com o humor do mercado.

Ou seja, o lucro ou prejuízo registrado pela mineradora a cada trimestre ou ano – no último trimestre de 2019 o lucro da Vale foi de 1,65 bilhão e ao longo de todo aquele ano, o prejuízo foi de R$ 1,7 bilhão – é equivalente a tudo o que a Renova já pagou, em mais de quatro, de indenizações e auxílios às pessoas que conseguiram ser aceitas no cadastro de atingidos da Fundação.

O fato é que milhões foram atingidos de alguma forma, já que o tsunami de rejeitos arrasou todo e comunidades ribeirinhas ao longo de mais de 600 km do Rio Doce, além de todo o litoral capixaba, a costa sul da Bahia e norte do Rio de Janeiro. Mas nem todos estão aptos a serem reconhecidos como atingidos com direitos a indenização. E milhares, apesar de terem seu modo de vida destruído pelo crime – seja pela impossibilidade de continuar desenvolvendo sua profissão, seja por problemas de saúde advindos do contato com a água e pescados contaminados pelos rejeitos de mineração que continuam a vazar – ainda não conseguiram ter seu cadastro aprovado. Pelo menos dez mil estão nessa situação, estima Enivaldo do Anjos, que tem recebido muitas reclamações por parte dos atingidos e vai levar esses questionamentos à Renova.

Também à Assembleia, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Espírito Santo conta que o atendimento oferecido pelo Estado nas regiões urbanas por conta do novo coronavírus não chegam nas comunidades pesqueiras e rurais, tampouco a Fundação Renova toma iniciativas nesse sentido.

Heider Boza, liderança do MAB/ES, lembra também da ausência da Fundação Renova nos compromissos assumidos. O acordo dos camaroeiros demorou dois anos para ser concluído e outros grupos sociais ainda não foram contemplados. “Não há mais distribuição de auxílios emergenciais e indenizações. A maioria dos processos das comunidades está paralisada, com exceção o dos camaroeiros. Os processos se perdem no caminho e não são concluídos”, denuncia.

Planos municipais de saúde

A situação detalhada da saúde dos atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP está sendo levantada pelos municípios capixabas, imbuídos de elaborar seus planos municipais de saúde, segundo determinação das Defensorias Públicas Estadual (DPES) e da União (DPU) e dos Ministérios Públicos Estadual (MPES) e Federal (MPF).

Os planos mais avançados são os de Linhares e Baixo Guandu, destaca o defensor público Rafael Portella, que diz não ter recebido ainda nenhum retorno sobre Aracruz. Inicialmente previstos para serem concluído em 2019, os planos tiveram seus prazos renovados à medida que os municípios foram informando o seu avanço. “Como se trata de um documento complexo, que exige além da consulta às comunidades atingidas o encaminhamento aos conselhos municipais de saúde, o processo tem demorado mais do que estimamos. A situação da pandemia agravou o planejamento”, comenta o defensor.

Depois de prontos, os planos precisam ser aprovados na Câmara Técnica de Saúde do Comitê Interfederativo (CIF) e as ações previstas neles devem ser implementadas pelos próprios municípios, sob uma perspectiva de fortalecimento do SUS, com recursos previstos no TTAC e repassados pela Fundação Renova.

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