Alegando sentir-se intimidada pela presença dos atingidos, a Fundação Renova comunicou oficialmente ao Comitê Interfederativo (CIF) sua decisão de se retirar das reuniões mensais do colegiado, que foi criado para deliberar e fiscalizar as ações da entidade voltadas à reparação e compensação dos danos advindos do crime da Samarco/Vale-BHP.
Para o prefeito de Baixo Guandu, Neto Barros (PCdoB), a atitude da Fundação é um “verdadeiro absurdo”, segundo publicou em suas redes sociais. “A atitude da fundação, supostamente criada para solucionar o crime ambiental da Samarco e recuperar o desequilíbrio ecológico causado nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, além da costa brasileira, demonstra total desrespeito a todos os atingidos e à sociedade brasileira”, disse o prefeito, que é, por indicação do governo do Estado, o representante dos municípios capixabas atingidos no CIF.
Historicamente, participam das reuniões membros do CIF, procuradores e promotores de justiça, Defensoria Pública, membros das câmaras técnicas vinculadas ao CIF, servidores públicos, atingidos e interessados. A presença dos atingidos tem se feito mais forte recentemente, o que provocou a reação da Renova, observa Neto Barros.
No encontro de outubro, em Brasília, relata o prefeito, toda a comitiva se levantou da sala durante o momento de fala dos atingidos, reservado ao final da reunião. “Levantaram em bloco. Todos repudiaram”, conta.
Na edição deste mês, a 43ª reunião, realizada em Belo Horizonte nessa segunda e terça-feira (18 e 19), apenas um representante da Renova compareceu, entregando o ofício que comunicava a insatisfação da Renova com a “intimidadora presença dos atingidos”.
“A Fundação sempre tratou todo mundo muito mal, Ministério Público, atingidos. Sempre esculhamba a todos publicamente, com sarcasmo e falas humilhantes. E agora se diz intimidada”, critica.
Neto Barros também já foi alvo da indignação da Renova ao ser contrariada. Em janeiro, o prefeito recebeu uma notificação assinada pelo gerente jurídico da fundação, Leonardo André Gandara, informando que a mesma adotaria “as medidas legais cabíveis perante as autoridades competentes com vista à responsabilização do Sr. Prefeito em razão do ocorrido”, referindo-se às declarações feitas por Neto Barros, em 18 de dezembro de 2018, durante a 33ª reunião ordinária do Comitê Interfederativo (CIF).
No ofício, a Fundação afirma que o chefe do Executivo de Baixo Guandu iniciou um “desrespeitoso discurso dizendo que a Fundação Renova e seus funcionários são incompetentes e que, na realidade, estão trabalhando em defesa dos interesses das empresas mantenedoras, sem real preocupação com as comunidades impactadas ou com a efetividade das ações de reparação e compensação socioeconômica e socioambiental previstas no TTAC [Termo de Transação e Ajustamento de Conduta]”.
Em suas redes sociais, Neto Barros disse que “a Fundação Renova ameaçou me processar por dizer o óbvio: R$ 4,4 bilhões investidos e nenhuma casa construída no distrito de Bento Rodrigues, Mariana, MG” e que “a Samarco (Vale e a BHP Billiton) deu calote nos municípios e até hoje não restituiu o que a população foi obrigada a custear para garantir água tratada às comunidades”.
Passados onze meses do ocorrido, a situação só piora, afirma o prefeito de Baixo Guandu. O percentual de atingidos reconhecidos pela Renova continua inferior a 5%, sendo que, deste ínfimo grupo, nem todos foram indenizados ou recebem auxílio emergencial.
“Está todo mundo indignado. Tem atingido falando que vai ser matar se jogando na linha de trem. Relatam que estão sem dinheiro, com a família deprimida, estão endividados, são desrespeitados. Uma senhora de Minas Gerais narrou na última reunião que faturava R$ 15 mil por mês como produtora rural. Hoje está sem dinheiro e sem poder produzir e não recebe auxílio nem indenização da Renova”, conta.
E os valores que são pagos ao pequeno grupo de atingidos reconhecidos, ressalta Neto Barros, são “uma ninharia” diante dos danos reais sofridos e dos lucros obtidos – a Vale lucrou R$ 6,5 bilhões somente no primeiro trimestre de 2019. “Se olhar o faturamento da Vale, o pagamento aos atingidos é ‘cafezinho’”, indigna-se.
Outro parâmetro que mostra a atitude mesquinha das mineradoras e da Renova é a ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) que estabeleceu em R$ 155 bilhões o montante a ser aplicado nas ações de compensação e reparação dos danos, valor bem maior que os R$ 20 bilhões a serem investidos em vinte anos, segundo estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em março de 2016 entre as empresas criminosas, a União e os governos estaduais do Espírito Santo e Minas Gerais.
“A economia nos municípios atingidos está muito prejudicada. E a Fundação é um cabide de empregos, com altíssimos salários”. Se nada mudar, argumenta o prefeito, “daqui a vinte anos esses funcionários estarão aposentados e as comunidades continuarão abandonadas”, vislumbra.
Acontece que algo parece estar mudando, sim. O que se comenta entre os atingidos e a frente de prefeitos do CIF é que essa retirada da Renova nas duas últimas reuniões é um esvaziamento proposital, que antecede uma saída definitiva da fundação, para uma possível entrada da Samarco como executora direta dos programas estabelecidos no TTAC. “É um esvaziamento proposital, porque está muito ruim, as ações não estão tendo nenhuma efetividade”, declara.
Essa substituição vem sendo solicitada por muitos atingidos. Em janeiro, por exemplo, no protesto feito nos trilhos da Vale em Baixo Guandu, os pescadores já exigiam serem recebidos pela Samarco e não pela Renova. Parlamentares capixabas também têm defendido a mudança, como a deputada estadual Iriny Lopes e o deputado federal Helder Salomão, ambos do PT.
Nesse sentido, Neto Barros também comenta a volta das operações da Samarco, que já ocorreu em Mariana e está prevista de ocorrer no Espírito Santo em 2020. “Que a Samarco volte, mas que volte em condições de pagar os prejuízos. Em vez de ter o lucro, que pague os prejuízos”, provocou.
Diante do cenário de total descaso com os atingidos, Neto Barros afirma que é ainda mais revoltante a decisão da Renova de gastar R$ 10 milhões na reforma de um imóvel em Mariana/MG e no pagamento de um aluguel de R$ 23 mil mensais do mesmo, segundo lhe informou outro gestor representante dos municípios atingidos no CIF, o prefeito de Mariana, Duarte Junior (PPS).
“Com R$ 3 milhões nós fizemos várias coisas em Baixo Guandu. Dez milhões em um imóvel é um absurdo”, criticou.