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O livro de Cesário Verde (parte – 4)

UMA ANÁLISE DA POESIA DE CESÁRIO VERDE
 
1 – O REALISMO EM SUA POESIA
Na sua poesia temos a predominância do mundo exterior, em que é ressaltada a materialidade dos objetos retratados em seus versos, no que temos, também, e ao fim, a imposição do mundo concreto, do mundo real, em sua poesia. E em seu contexto temos o predomínio do cenário urbano, o qual também é fonte dileta dos escritores que configuram os cenários literários do realismo e do naturalismo. E, em Cesário Verde, tal nuance poética vai ganhar uma atenção sempre detalhista e focada em pormenores, tudo isso numa linguagem que também será popular e coloquial, enriquecendo o aspecto concreto de sua poesia.
2 – O MODERNISMO EM SUA POESIA
Embora a poesia de Cesário Verde seja de um conteúdo empenhado na descrição cotidiana, isto é, da vida real ou vida vivida, ela tem uma instância em que há uma visão subjetiva do poeta ali nos seus versos, e que pode nos levar ao questionamento de sua filiação como poeta realista, pois muitas vezes o poeta tem uma visão valorativa na sua expressão poética, refletindo, ademais, uma sensibilidade estética que podemos situar num impressionismo pictórico.
Pois, as impressões do poeta é que fazem tal descrição do real garantir o valor poético dos seus versos inovadores, suplantando o real objetivo tomado por si mesmo, e tendo aqui o olhar do poeta como um filtro do que esta realidade nos apresenta. Há na poesia de Cesário Verde uma espécie de recriação e transfiguração do real quando este ganha expressão poética nos seus versos, e que muitas vezes pode ser precursora do que viria a ser a estética surrealista. E, quanto à poesia de Cesário Verde, esta pode ser exemplificada como uma operação estética em que o vulgar e o feio, formas inestéticas do real, são transformadas na matéria que acaba por ser condensada nesta poesia nova. O cotidiano e a realidade trivial na poesia de Cesário Verde são valoradas como fontes também da poesia, e que no poeta revelam um pendor subversivo e uma componente sinestésica de poesia, na qual é a sensação que define os objetos reais.  
 
3 – O ESTILO DA POESIA DE CESÁRIO VERDE
A poesia de Cesário Verde apresenta, em muitos de seus poemas, uma estrutura narrativa, com ações protagonizadas por agentes ou atores, e que muitas vezes tem o caráter deambulatório de uma poesia itinerante, na exploração do espaço por uma vontade errante, como se estivéssemos na perspectiva de uma câmera de filmar, na qual temos a fixação sucessiva de vários planos, e isso sobretudo quando temos o poeta em seus versos citadinos, que é um passeio obsessivo pela cidade, e também pelo campo, em outros poemas, que revelam o caráter de uma poesia que podemos chamar de transeunte.  
 
4 – A TEMÁTICA NA POESIA DE CESÁRIO VERDE
Na cidade, deambulando pelas ruas e becos, o poeta revive por evocação da memória todo o passado e os seus dramas; numa espécie de opressão que lhe provoca um desejo “absurdo de sofrer”, por outro lado, quando fala do campo, o poeta nos dá toda a sua vitalidade e força telúrica, não sendo um poeta, portanto, de um convencionalismo idílico, mas alguém que está voltado para a natureza, os pomares, e o cansaço da família durante as colheitas. O contraste cidade/campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário Verde, no que temos a oposição entre um amor poético ao rústico e natural, contra uma dor urbana que, no entanto, o poeta vive concretamente, sem mais.   
 
5 – A BUSCA DA PERFEIÇÃO FORMAL
Cesário Verde é também caracterizado pela utilização do Parnasianismo, pois busca, como esta escola de poesia, uma perfeição formal, e isso através de uma poesia descritiva que ganha contornos de versos escultóricos, numa poesia que tenta esculpir o concreto com nitidez poética, e que nasce de uma necessidade de objetivar ou despersonalizar a poesia para uma pura expressão, e que resulta numa poesia que se aproxima das artes plásticas, com alto nível formal e uma intensa utilização de cores e de dados sensoriais.  
 
6 – A POESIA DE CESÁRIO VERDE E SEU CONTEXTO ESTÉTICO E LITERÁRIO
Cesário Verde tem uma prática poética caracterizada por um culto descritivo, numa linguagem que prima pela contenção, numa sensibilidade em confronto com o então romantismo dominante de sua época, e num gosto de versos erguidos com reserva irônica e frieza expressiva. Sendo Cesário Verde, também, um poeta contra a retórica, e isto no sentido de que o poeta vai de encontro a uma poesia incontida e verbosa, confrontando isso numa poesia nova que se expressa na dosagem sensata de impressões, em linhas e volumes entre o agradável e o repugnante, entre as alturas da nobreza e uma linguagem corriqueira, com alternâncias e contrastes diversos, que resultam numa poesia que faz uma regressão incansável para as ideias fortuitas. E aqui temos também uma poesia de vivência sensorial, que antecipa as lições antimetafísicas de um Alberto Caieiro, por exemplo.
 
POEMAS:
 
EM PETIZ
 
I – DE TARDE: O poema do povo liga o poeta a uma dor mortiça, um confronto que começa em poesia e vai dar no mundo real, dorido em muitos casos que vemos: “Mais morta do que viva, a minha companheira/Nem força teve em si para soltar um grito;”. E o poema continua: “Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:/Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!/E os fartos animais, ao recolher dos pastos,/Roçavam pelo teu costume de percale.”. A nitidez cotidiana e a linguagem de uma vida prosaica aqui são os temas dominantes.
 
II – OS IRMÃOZINHOS: O poema continua, agora numa visão pastoril, mas em versão de uma natureza objetiva e seca: “Pois eu, que no deserto dos caminhos,/Por ti me expunha imenso, contra as vacas;” (…) “Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!/Os velhos, que nos rezam padre-nossos;/Os mandriões que rosnam, altos, grossos;”. A ver mandriões, o poeta tem um certo inconformismo, e uma profunda inquietação, que resulta em versos de tal monta: “E os pobres metem medo! Os de marmita,/Para forrar, por ano, alguns patacos,/Entrapam-se nas mantas com buracos,/Choramingando, a voz rachada, aflita.”. O cenário pobre é de uma dureza de uma vida deserta de ambições, a não ser a sobrevida num ritual de rotina cáustica, no que o poema segue: “Querem viver! E picam-se nos cardos;/Correm as vilas; sobem os outeiros;” (…) “Aos sábados, os monstros, que eu lamento,/Batiam ao portão com seus cajados;/E um aleijado, com os pés quadrados,/Pedia-nos de cima de um jumento./O resmungão! Que barbas! Que sacolas!/Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;/Dormia as noites por telheiros rotos,/E sustentava o burro a pão de esmolas.”. A visão miserável predomina neste poema de esmola, numa vida rota e desesperada.
 
III – HISTÓRIAS: O poema se abre com tais versos: “Cismático, doente, azedo, apoquentado./Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,”. O poeta quer um agouro contra os crimes, e prossegue: “Na noite velha, a mim, como tições ardendo,/Fitavam-me os olhões pesados das ciganas;/Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;/Cercava-me um incêndio ensanguentado, horrendo.”. A visão é de sangue e incêndio, e o poema termina como um mugido, eis a vida dura, sem mais: “E protegia-te eu, naquele Outono brando,/Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,/Gritos de maiorais, mugidos de boiadas,/Branca de susto, meiga, e míope, estacando!”.
 
POEMAS:
 
EM PETIZ
 
I
DE TARDE
 
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
 
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás malhadas e turinas.
 
Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro,
Leva-o, de madruga, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!
 
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu costume de percale.
 
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
 
II
OS IRMÃOZINHOS
 
Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha imenso, contra as vacas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobrezinhos!
 
Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandriões que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moço.
 
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,
Ou que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!
 
E os pobres metem medo! Os de marmita,
Para forrar, por ano, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, aflita.
 
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
 
Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as vilas; sobem os outeiros;
E às horas de calor, nos esterqueiros,
De roda deles zumbem os moscardos.
 
Aos sábados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao portão com seus cajados;
E um aleijado, com os pés quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.
 
O resmungão! Que barbas! Que sacolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noites por telheiros rotos,
E sustentava o burro a pão de esmolas.
 
*
Ó minha loura e doce como um bolo!
Afável hóspeda da nossa casa,
Logo que a tórrida cidade abrasa,
Como um enorme forno de tijolo!
 
Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas crianças num casal queimado;
E eu, pela estrada, espicaçava o gado,
Numa atitude esperta e decidida.
 
Por lobisomens, por papões, por bruxas,
Nunca sofremos o menor receio.
Temíeis, vós, porém, o meu asseio,
Mendigazitas sórdidas, gorduchas!
 
Vícios, sezões, epidemias, furtos,
Decerto fermentavam entre lixos;
Que podridão cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
 
*
Sei duma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruça, descalça, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pé dos choupos e dos freixos.
 
E a doida a quem chamavam a “Ratada”
E que falava só! Que antipatia!
E se com ela a malta contendia,
Quanta indecência! Quanta palavrada!
 
Uns operários, nestes descampados,
Também surdiam, de chapéu de coco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgraçados.
 
Muitos! E um bêbado – a Camões – que fora
Rico e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.
 
E o resto? Bandos de selvagenzinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um que, cortada a mão, coçava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.
 
Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau e vinha
Chorar, humilde, junto da cozinha:
“Cinco reizinhos! … Nobres benfeitores! … “
 
E quando alguns ficavam nos palheiros
E de manhã catavam os piolhos:
Enquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos cães ladravam, rezingueiros!
 
Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, das manetas.
Sulcavam as calçadas as muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!
 
III
HISTÓRIAS
 
Cismático, doente, azedo, apoquentado.
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besuntão dos tais se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.
 
Mináveis, ao serão, a cabecita loira,
Com contos de província, ingênuas criaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas
E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!
 
Na noite velha, a mim, como tições ardendo,
Fitavam-me os olhões pesados das ciganas;
Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;
Cercava-me um incêndio ensanguentado, horrendo.
 
E eu que era um cavalão, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto,
Sonhava que os ladrões – homens de quem me espanto –
Roubavam para azeite a carne dos meninos!
 
E protegia-te eu, naquele Outono brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maiorais, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga, e míope, estacando!
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor 

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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